Gertrudes Marques, uma mulher do povo em 1817

A Revolução permitiu aos humildes respirar os vapores da justiça e da igualdade, como nunca antes

Dela não sabemos quase nada. Mas é provável que, como todo mundo, no Recife, Gertrudes tenha sido pega de surpresa pelo levante que irrompeu, subitamente, no dia seis de março de 1817. Até então, a política era proibida, e aquilo vinha sendo preparado pela maçonaria, uma sociedade secreta formada por homens instruídos como padres, militares, advogados etc. — bem longe das vistas dela, que era mulher, parda, pobre e analfabeta. O novo regime, porém, lhe trouxe grandes vantagens, e ela deve ter feito o que pôde para apoiá-lo, sem imaginar o quanto isso lhe custaria…

COMIDA E ALEGRIA

A primeira novidade boa foi a queda no preço dos alimentos. É verdade que as secas, aqui acolá, contribuíam para a carestia. Mas, como dizia o bispo Azeredo Coutinho nas suas pregações, anos atrás: “a miséria não deve ser atribuída às intempéries e sim à conjuração de mãos dadas entre homens ricos e poderosos, para tirar todo partido possível da desgraça do povo”. Os grandes responsáveis pela fome eram os comerciantes lusos que especulavam à vontade, mancomunados com as autoridades que deveriam fiscalizá-los; e o governo revolucionário tomou logo a providência de adquirir alimentos e revendê-los à população a preço de custo. E ainda mandou os agricultores plantarem mandioca, feijão, milho e arroz, além de cana e algodão, para tornar Pernambuco menos dependente do que vinha de fora.

Formidável, também, foi o decreto abolindo os tratamentos de “senhor” e “vosmicê” dados às pessoas consideradas importantes. Todos passaram a se tratar apenas de “patriota” (equivalente, hoje, a “companheiro”) e “vós” (você), e os pobres não precisaram mais dar passagem quando cruzavam com alguém “bom” (rico) na rua. Naqueles tempos modernos, Gertrudes viu muitos negros cativos bater nos ombros dos brancos, dizer “bons dias, patriota” e pedir ou oferecer tabaco, sem tirar o chapéu da cabeça. E, provavelmente, se embriagou com o “vapor” (“ar” ou “cheiro”) de uma igualdade que jamais havia respirado.

Por fim, ela deve ter se divertido muito. Os maracatus — ou “batuques de negro”, como também eram chamados —, que estavam proibidos, foram liberados. E a massa formada por pretos, mulatos e brancos pobres pôde desfilar pelas ruas sem estar de cabeça baixa, acompanhando uma procissão. Pelo contrário, festejando à vontade, bebendo, cantando, dançando e celebrando a liberdade como nunca fizera antes.

Já o casamento do governador Domingos Martins com a jovem Maria Teodora foi a maior festa popular até então ocorrida em Pernambuco. Aquele casal bonito namorara em segredo durante quatro anos porque o rapaz, mesmo sendo um comerciante de posses, era brasileiro; e o pai da moça, um português muito rico, jamais permitiria que sua filha se unisse a um deles. Foi preciso uma revolução para botar abaixo esse preconceito, e Gertrudes deve ter comemorado muito essa vitória nas ruas, junto com o povo. A festa da benção da bandeira — aliás, muito bonita, azul e branca e bastante enfeitada com um sol, um arco-íris, três estrelas e uma cruz — também foi enorme. Mas toda essa alegria, infelizmente, durou pouco.

LADEIRA ABAIXO

A tristeza começou já no dia onze de abril, quando navios de guerra portugueses bloquearam o porto. Logo pararam de entrar a charque do Rio Grande do Sul e o feijão e a farinha da Bahia, com os quais se fazia o “pirão”, prato principal da gente pobre e remediada. E quando os governos revolucionários da Paraíba e Rio Grande do Norte foram derrubados, e a maior parte dos distritos do interior de Pernambuco também deu as costas à Revolução, o “de comer” acabou-se de vez, no Recife.

Em maio, Gertrudes ouviu falar de um grande exército monarquista despachado da Bahia, que cruzara o rio São Francisco, e viu a cidade ir ficando deserta. O movimento no porto, outrora intenso, cessou completamente, e quem podia partia de mala e cuia. Só restaram os pobres sem recursos nem parentes no interior. E a chegada, aos poucos, dos soldados republicanos derrotados na batalha travada contra o tal exército inimigo no Engenho Trapiche, no dia 13 de maio — eles vinham pálidos, esmolambados, com os pés estragados —, dava a impressão de que tudo estava perdido, mesmo.

Finalmente, na manhã de 18 de maio, ela soube que o governo revolucionário mandara dois embaixadores ao encontro do comandante da esquadra do bloqueio, o vice-almirante Rodrigo Lobo, para negociar a rendição. Mas, à tarde, correu a notícia de que eles tinham retornado sem fechar acordo, e ninguém parecia saber o que fazer, naquela situação. Nem mesmo o general Domingos Teotônio, eleito comandante único pelos demais governadores, para enfrentar a crise.

Uma repressão ferocíssima, porém inútil

No dia 19, Teotônio enviou outro negociador ao encontro do Lobo. Porém, sem esperar pela resposta, reuniu suas tropas e abandonou o Recife, pretendendo seguir com a luta no interior.
A causa, porém, já estava perdida.

No dia 20, chegou a notícia de que a coluna de Teotônio se dissolvera no Engenho Paulista, poucas léguas ao norte. E Gertrudes viu a perseguição aos derrotados começar, e um pavoroso clima de terror se estabelecer rapidamente, com espiões por toda parte, estupros das filhas e mulheres dos patriotas e sequestro dos seus bens.

De início, os líderes revolucionários iam sendo despachados para a Bahia, na medida em que eram capturados. Mas, com a chegada do novo governador português, o general Luís do Rego, em junho, instalou-se um tribunal militar no Recife e os julgamentos e execuções passaram a ser feitos lá mesmo. Até que, em setembro, o príncipe D. João, ao proclamar-se rei, depois de conceder autonomia à comarca das Alagoas, como mais um castigo aos pernambucanos, suspendeu a devassa. Dos 180 presos que havia no Recife, uma parte foi libertada e maioria levada para Salvador, onde os que não morreram de maus tratos ainda penaram por mais quatro longos anos.

A repressão, porém, não se restringiu aos patriotas ricos e remediados. Centenas de escravos e de homens pobres livres, que de algum modo apoiaram a República, foram violentamente açoitados, enquanto as mulheres recebiam “bolos” de palmatória nas mãos. E não apenas como punição, mas para esquecerem o gostinho da justiça e da liberdade que haviam experimentado, para lembrar-se que não passavam de gado humano — o que não adiantou de nada, haja vista o grande apoio popular aos levantes ocorridos nos anos seguintes, em Pernambuco.

A humilde revolucionária Gertrudes Marques, por exemplo, ficou 45 dias presa, tomando duas dúzias de bolos pela manhã e duas pela tarde; e uma pequena anotação, nas atas da devassa, foi o único registro que dela ficou para a História. Mas aqui a recordamos, em sua homenagem e em homenagem a milhares de outros heróis e heroínas brasileiros/as anônimos/as, do passado e do presente.

Mulheres na política

Participar das atividades políticas era algo praticamente fora do alcance feminino, no Brasil colonial. Inclusive das mulheres de classe alta, também mantidas na ignorância e submetidas ao “pátrio poder” dos seus pais e maridos. Mesmo assim, duas pernambucanas se destacaram, em 1817: Maria Teodora da Costa, a “noiva” da Revolução, e Bárbara de Alencar. Essa última, uma viúva de posses, futura avó do escritor José de Alencar, liderou o levante no distrito do Crato, Ceará, sendo por isso detida e encarcerada na Bahia.

O francês e as pernambucanas

O comerciante François Louis Tolennare, que esteve no Brasil em 1817, fez excelentes observações sobre Pernambuco, em geral, e sobre as pernambucanas, em particular. Na opinião dele, por exemplo, as brancas ricas tinham “olhos que prometiam muito”, mas raramente eram bonitas ou interessantes, devido ao ócio e à reclusão. Elas mal saíam de casa, viviam rodeadas de escravas e a falta de exercícios deformava seus corpos desde a adolescência. As negras, porém, eram fantásticas. Quanto mais ele as observava, mais via nos seus corpos “as maravilhosas curvas das estátuas gregas”. E “não havia roupa, por mais vulgar ou ousada, que não soubessem vestir com originalidade e aprumo”.

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