J. I. de Abreu e Lima, o “general das massas”
Ele ajudou a libertar seis países sul-americanos e lutou pelos direitos civis até depois de morto
O recifense José Inácio de Abreu e Lima era o militar mais experiente e condecorado do País, um general que, de espada em punho, ajudara a libertar várias nações sul-americanas do domínio espanhol. E estava em Pernambuco quando o seu partido político proclamou a Revolução Praieira, em 1848. Mas não participou da luta armada porque, em sua opinião, as crises, dentro do Brasil, deveriam ser resolvidas por meio do debate, não pela guerra civil.
No campo das ideias, porém, ele jamais parou de brigar. Nem mesmo quando já estava sob sete palmos de terra, dentro de um caixão…
HERÓI DE GUERRA
A impressionante trajetória militar e política de Abreu e Lima começou na Revolução de 1817 — mesmo não tendo dela participado diretamente. Ele era, então, um jovem capitão de Artilharia patriota e de cabeça quente que, por haver brigado com um oficial superior português, fora despachado preso para Salvador, antes de o movimento rebentar no Recife, no dia seis de março. E lá estava quando, no dia 26 daquele mês, seu pai — que também se chamava de José Inácio, mas fora apelidado de “Padre Roma”, pois se ordenara na Santa Sé — e seu irmão caçula, Luís, foram atirados em sua cela.
O Padre Roma havia sido enviado pelo governo revolucionário de Pernambuco para fazer contato com os patriotas baianos. Mas foi capturado logo após desembarcar da jangada, em Itapoã, e sob as ordens do Conde dos Arcos, governador da Bahia, em apenas dois dias foi julgado e fuzilado, na presença dos filhos. Esse episódio marcou profundamente os rapazes e fez com que ambos se tornassem ardorosos revolucionários, daí para frente.
Seis meses depois, eles conseguiram fugir da prisão e embarcar clandestinamente para os Estados Unidos e, em seguida, para Venezuela, visando se alistar no exército de Simón Bolívar. Luís acabou ficando em Porto Rico, onde se empregou no comércio, mas José Inácio seguiu em frente e tornou-se um destacado auxiliar do Libertador das Américas.
Entre 1819 e 1830, ao lado de Bolívar, o pernambucano cruzou a Amazônia de canoa, escalou altíssimas cordilheiras, atravessou pântanos imensos e arriscou a vida em dezenas de batalhas, participando da libertação dos atuais Equador, Colômbia, Venezuela, Peru, Panamá e Bolívia. Ferido e condecorado muitas vezes, ele chegou ao posto de general por bravura e merecimento, e também pelejou com a pena, além da espada, escrevendo em vários jornais.
“UM DOS MUITOS“
Morto Bolívar, Abreu retornou ao Brasil, em 1831, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, e, surpreendentemente, passou a defender a monarquia, não o republicanismo pelo qual tanto se batera no exterior. Mas, ao mesmo tempo, exigia mudanças radicais como a reforma agrária e o fim da escravidão porque, apesar de membro da elite — sua família era um das mais tradicionais de Pernambuco — ele se considerava “um dos muitos”.
“Também faço parte deste povo depreciado a cada instante, que os espertos chamam de ‘vil canalha’, depois de havê-lo enganado para enriquecer, à custa da sua boa fé”, ele escreveu certa feita. E por isso ganhou o jocoso apelido de “o general das massas”.
Suas ideias, aparentemente contraditórias, baseavam-se, contudo, no que ele tinha visto nas suas andanças. Sob a república, os povos hispano-americanos, em vez de se ajuntarem em grandes nações e confederações, como queria Bolívar, acabaram se repartindo em diversas republiquetas, às vezes inimigas entre si. O general não queria isso para o Brasil e, em sua opinião, somente o imperador poderia garantir a união nacional.
Ele também achava que, com o monarca fora de cena, os grandes proprietários passariam a mandar sozinhos no País e a situação do povo pioraria ainda mais. E por conta dessas ideias comprou muitas brigas no Rio de Janeiro, onde publicou vários livros, cartilhas, panfletos e até um jornal, tudo sem aceitar cargos públicos nem favores do imperador.
Em 1844, José Inácio voltou à sua terra e candidatou-se a deputado nacional (federal), sem considerar que, após 27 anos fora, tornara-se um desconhecido. Em consequência, não conseguiu se eleger, mas ficou por aqui, integrando o Partido Nacional de Pernambuco — mais conhecido como “a Praia” —, tanto por motivos de afinidade política quanto familiar: seus três irmãos, Luís, João e Antônio, eram destacados líderes “praieiros”.
Socialismo por meio da ciência e da educação
Em 1848, porém, o Partido Conservador, controlado pelos grandes proprietários, ganhou as eleições nacionais. E os praieiros, que há três anos governavam Pernambuco, foram obrigados a entregar o poder de volta aos chamados “guabirus”. Alguns deles, porém, não aceitaram a derrota, partiram para a luta armada, e o general se viu dividido entre suas crenças e lealdades. De um lado, com a família e os amigos a favor do povo, contra as injustiças sociais. De outro, pela manutenção da integridade nacional, ameaçada pela guerra civil.
Que rumo tomar, nessa encruzilhada?
Por trás das suas trincheiras de papel, os jornais, o velho soldado pelejou o quanto pôde para evitar o confronto. Mas foi vencido pela ousadia e a paixão dos jovens praieiros radicais, que reagiam ao atraso e às perseguições dos guabirus conservadores.
Em fevereiro de 1849, a peleja chegou ao ponto máximo com o ataque dos praieiros ao Recife. E eles caminhavam para a vitória quando a morte em combate do deputado Joaquim Nunes Machado fez suas tropas debandarem. A partir daí, o movimento foi murchando até se extinguir. E o general — apesar da sua postura pacifista — passou dois anos preso em Fernando de Noronha, como um dos “cabeças” da Revolução.
Anistiado dois anos depois, ele ainda viveu por duas décadas no Recife, praticando homeopatia num gabinete montado em sua casa, onde atendia os pobres, gratuitamente. E retomou sua velha luta pelo progresso social, mas só no campo das ideias.
Entre outras publicações, Abreu lançou, em 1851, “O Socialismo”, talvez o primeiro tratado sobre o tema escrito nas Américas. Nele, defendia os princípios básicos dessa doutrina, mas atacava as propostas dos socialistas utópicos europeus como Blanc, Owen, Fourier etc. (Marx não foi citado). E continuou a se envolver em polêmicas, tendo a última delas alcançado dimensão nacional.
Embora fosse católico praticante, o general comprou briga com a Igreja ao defender o direito de os protestantes ingleses pregarem sua doutrina por aqui. Por isso, quando morreu, em março de 1869, o bispo Cardoso Ayres proibiu que seus restos fossem enterrados em cemitério católico, e eles acabaram repousando sob uma cruz celta, no Cemitério dos Ingleses.
Esse episódio, porém, repercutiu muito e ajudou a acelerar o processo de separação entre Igreja e Estado, no Brasil. E foi assim que, até depois de morto, o general continuou pelejando pelos direitos civis, como fez durante toda a sua vida. Hoje, Abreu e Lima dá nome a uma refinaria de petróleo e a um município, em Pernambuco.
Na próxima semana, o Marquês de Olinda.
O Socialismo
Para Abreu e Lima, o socialismo não era “nem uma ciência, nem uma doutrina, nem uma religião, nem uma seita, nem um sistema, nem um projeto, nem uma ideia”, mas “um desígnio da Providência”, e a palavra “socialista”, em sua opinião, “encerrava em si uma missão divina”. Ele acreditava que chegaríamos a esse estágio superior por meio da ciência e da educação, apenas, não da luta armada. O progresso material traria consigo a evolução moral e a civilização, mas sem afetar a propriedade e a família, “bases de qualquer sociedade”.
A pena como arma
Abreu e Lima estreou no jornalismo em 1819, escrevendo sobre assuntos brasileiros no “Correo del Orenoco”, porta-voz do exército bolivariano. Anos depois, polemizou com o filósofo francês Benjamim Constant, em defesa de Bolívar, nas páginas de um jornal parisiense, o “Courrier Français”. E publicou um jornaleco na Colômbia, “La Torre de Babel”, em 1830, também de apoio ao Libertador, que já estava no final da vida e da carreira, a caminho do exílio. No Rio de Janeiro, publicou “O Raio de Júpiter”. No Recife, escreveu no “Diário Novo”, principal porta voz do partido praieiro, publicado pelo seu irmão Luís, e lançou, também, “A Barca de São Pedro”, “um jornal político, talvez de oposição”. Sempre em defesa das causas populares.