Dom Hélder Câmara, o apóstolo da Democracia
Ele foi amigo dos pobres e um dos maiores adversários do regime militar implantado no Brasil em 1964
Uma impressionante cerimônia realizou-se nas catacumbas de Domitila, uma das principais câmaras subterrâneas onde os antigos cristãos sepultavam seus mártires, em Roma, no dia 16 de novembro de 1965. Quarenta bispos católicos que participavam do Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII, lá celebraram uma missa e assinaram o “Pacto das Catacumbas” em defesa da chamada “Teologia da Libertação” — uma doutrina desenvolvida por padres latino-americanos que pregava a volta da Igreja às suas origens, ao lado dos pobres e dos oprimidos. E um dos mais atuantes desse grupo era um cearense pequeno, magrinho e cabeçudo que falava mansamente, mas fazendo gestos largos, parecendo querer abraçar o mundo.
Valente defensor dos Direitos Humanos, ele combateria a ditadura militar sem tréguas, usando como armas apenas a caridade, o amor ao próximo e a resistência não-violenta…
VOCAÇÃO RELIGIOSA
Hélder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza, em 1909, décimo primeiro dos treze filhos de João Eduardo Torres Câmara Filho, comerciário e jornalista, e da professora Adelaide Pessoa Câmara. Muito cedo quis ser padre e aos 14 anos ingressou no Seminário Diocesano, ordenando-se aos 22 com autorização da Santa Sé, pois não tinha a idade mínima exigida (25) para o sacerdócio. Logo fundou a Legião Cearense do Trabalho e, em 1933, a Sindicalização Operária Feminina Católica, reunindo lavadeiras, passadeiras e empregadas domésticas. Também dirigiu o Departamento de Educação do Ceará até ser transferido para o Rio de Janeiro, então capital da República, em 1936.
Nessa fase da vida, ainda jovem, o padre Hélder deixou-se seduzir pelo programa social da Ação Integralista Brasileira, que tinha como lema “Deus, Pátria e Família”. Mas logo percebeu quais eram os verdadeiros propósitos daquela organização de direita e saltou fora.
Em 1952, ele tornou-se bispo pelas mãos do cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, com quem iria se confrontar, mais adiante. E naquele mesmo ano, com apoio do monsenhor Giovanni Montini, futuro papa Paulo VI e então subsecretário de estado do Vaticano, ajudou a criar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que promoveria grandes mudanças na orientação da Igreja Católica no País.
Embora Dom Jaime, que era extremamente conservador, tenha assumido a presidência da CNBB, Dom Hélder se tornou secretário-geral e emergiu como uma nova liderança progressista. E foi adiante, cruzando fronteiras. Em 1955, articulou a fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), com sede em Bogotá, do qual se tornou presidente. Mas sem descuidar da sua diocese.
Em 1956, ele lançou a Cruzada São Sebastião, para dar moradia aos cariocas sem-teto. E em 1959 fundou o Banco da Providência, para acudir os que viviam em extrema pobreza.
As circunstâncias políticas, contudo, interromperam seu trabalho no do Rio de Janeiro.
ARCEBISPO VERMELHO
No início dos anos sessenta, o mundo vivia a “guerra fria” entre os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética (URSS), socialista. Na América Latina, com suas tremendas desigualdades sociais, a tensão cresceu ainda mais após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, e se refletia no meio religioso. O Congresso da Juventude Universitária Católica (JUC), realizado no Rio, em 1960, por exemplo, estabeleceu como diretriz a “luta contra o subdesenvolvimento e a primazia do capital sobre o trabalho, em prol da reforma agrária e do controle estatal dos setores de base da economia”, fazendo com que Dom Jaime se recusasse a celebrar a missa de encerramento.
Em 1961, a posse do presidente Jânio Quadros, que defendeu a admissão da China na ONU, o reatamento das relações diplomáticas com a URSS, rompidas em 1947, e ainda visitou Cuba, atiçou o conflito ideológico no País. E os principais meios de comunicação deflagraram uma grande campanha anticomunista, da qual Dom Jaime participou ativamente com seu programa de rádio A voz do pastor.
Então, em agosto de 1961, após seis meses de governo, Jânio renunciou. O vice João Goulart, um progressista, assumiu a presidência, em 1962, defendendo “reformas de base”, entre as quais a Reforma Agrária. E a CNBB, influenciada por Dom Hélder, se pronunciou de forma categórica a favor das tais reformas.
Dom Jaime, em resposta, trouxe para o Brasil o padre norte-americano Patrick Peyton, que implantou a “Cruzada do Rosário em Família”, um grande instrumento de mobilização da classe média contra o governo Jango.
No dia 13 de março de 1964, houve um comício na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em defesa das reformas de base, com 250 mil participantes. No dia 19, porém, 500 mil pessoas desfilaram em São Paulo na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em protesto contra elas. No dia 1º de abril, Jango foi derrubado pelos militares. E, poucos dias depois, Dom Jaime transferiu Dom Hélder para a arquidiocese de Olinda e Recife.
Com o pensamento no céu, mas os pés na terra
O novo posto no Nordeste e a nova conjuntura, contudo, não o intimidaram. Já no seu discurso de posse, ele pediu: “não acusemos de comunistas os que apenas têm fome e sede de justiça”. E assim ganhou do afamado jornalista David Nasser o apelido de “Arcebispo Vermelho”.
“D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva”, escreveu o também jornalista e teatrólogo Nélson Rodrigues. Gilberto Freyre o chamou de “Kerensky” (comunista russo) e “Goebbels” (nazista alemão). Isso, porém, antes da decretação do Ato Institucional no5 (AI-5), em dezembro de 1968, a partir do qual foram proibidas quaisquer referências a ele em todos os órgãos de imprensa brasileiros. Se a ditadura não podia prendê-lo e sumir com ele, como fez com centenas de outros oposicionistas, pois se travava de uma figura de projeção internacional, tentou torná-lo invisível em seu país, além de aterrorizá-lo.
A casinha humilde onde ele vivia, nos fundos da igrejinha das Fronteiras, desprezando o conforto do Palácio Episcopal dos Manguinhos, por exemplo, foi metralhada. Igrejas e prédios da Cúria e da CNBB foram invadidos. Sacerdotes estrangeiros foram expulsos. Mas o pior golpe sofrido por Dom Hélder talvez tenha sido a perda do padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu pároco da Juventude, covardemente sequestrado, torturado, mutilado, assassinado e “desovado” na Cidade Universitária, no Recife, em maio de 1969.
Se a voz do bispo não era ouvida aqui, porém, ecoava mundo afora, denunciando as violações dos Direitos Humanos no Brasil. E, em reconhecimento à sua luta, ele foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, em 1970, que não lhe foi concedido devido a um grande esforço em minar sua candidatura, promovido pelo governo brasileiro. Mas ele ganhou o Prêmio Popular da Paz, na Noruega, naquele ano.
Por outro lado, toda essa perseguição fez até gente que discordava das suas ideias lhe prestar solidariedade. “Irmão dos pobres, meu irmão”, com essas palavras o papa João Paulo II o abraçou e saudou na visita que fez ao Recife, em 1980. E ele prosseguiu lutando. Como arcebispo, até 1984, quando completou 75 anos de idade, e como padre e cidadão até morrer, aos 90, no Recife, em 1999.
Dom Hélder Câmara recebeu em vida 32 títulos de doutor concedidos por universidades e de cidadão por 28 cidades, do Brasil e de outros países. Em 2015, o Vaticano deu início ao seu processo de beatificação. E na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil ele já se encontra na galeria dos santos.
Teologia da Libertação
Surgida entre as décadas de 50 e 60, na América Latina, essa doutrina busca fazer do cristianismo também um instrumento de combate à miséria e à opressão. Segundo ela, o Reino de Deus está presente neste mundo, e os pobres não devem ser apenas objetos de caridade, mas apoiados na sua luta por melhorias de vida. Nos anos 80, a Congregação para a Doutrina da Fé, sob o comando do cardeal Ratzinger, depois papa Bento XVI, a condenou, acusando-a de eliminar o sentimento religioso e incentivar a luta de classes, e ela foi perdendo forças, gradualmente.
Padre Henrique
Eu tive a sorte de conhecê-lo, nos meus tempos de secundarista. Mulatinho, baixinho, magrinho, extremamente carismático, Henrique era adorado pela garotada. E tinha apenas 29 anos quando foi trucidado por criminosos que com isso pretendiam golpear Dom Hélder e aterrorizar a juventude. Mas o efeito foi contrário. No dia do enterro, a imprensa foi proibida de dar qualquer nota a respeito. Mesmo assim, milhares de estudantes nos mobilizamos (sem Internet nem celulares) e levamos seu caixão em passeata da Igreja do Espinheiro até o Cemitério da Várzea, ameaçados por um batalhão da PM durante todo o trajeto. E se eu e muitos outros não tínhamos, até então, grande interesse em política, o martírio desse herói pernambucano nos abriu os olhos e nos deu um rumo, daí para frente. (PSO)