A fibra de quem vive de fazer arte

Delicadeza marca a produção de utilitários e objetos de decoração com a técnica da cestaria e uso do couro animal como matéria-prima

Mais do que matérias-primas para o artesanato local, o couro e as fibras naturais como a cana-brava são testemunhas da ocupação humana em Pernambuco. O primeiro é símbolo da colonização do interior. As fibras carregam a herança indígena presente no estado. Além da importância histórica, a relevância dos dois materiais passa pelo campo econômico e cultural, ao darem sustento para comunidades inteiras por meio da confecção de objetos de decoração e utilitários. Na sexta reportagem da série Mãos à arte, o Viver revela o impacto do trabalho com esses suportes por parte de artesãos de Goiana, na Mata Norte, e de Altinho, no Agreste.

Em Pontas de Pedra, no extremo norte do Litoral pernambucano, o turismo não é a única atividade com potencial para atrair renda aos habitantes. A prova está em uma casa simples, mas aconchegante, a pouco mais de um quilômetro da orla. É lá onde encontramos dois irmãos, Lourenço Luna, de 61 anos, e José Carlos Luna, de 55, que desde crianças trabalham com a cestaria em cana-brava. O ofício entrou na rotina dos dois a partir da atividade do pai, um pescador cujo instrumento de trabalho era o covo, uma armadilha para peixes. “Nossa vida era muito difícil. Comecei a observar a forma dos covos, como se fazia, e começamos a tentar fazer por conta própria, sem ninguém ensinar. Minha mãe incentivava e, um dia, uma veranista da Rua da Praia comprou toda a nossa produção. Isso fez a gente continuar trabalhando”.

Hoje em dia, os irmãos Luna, junto com a esposa de José Carlos, Marleide Ferreira, confeccionam mais de cem objetos diferentes em fibra de cana-brava. Entre eles, estão luminárias, cestas, árvores de natal, porta-lápis, porta-guardanapos, cestos de roupa e boleiras, os campeões de vendas. A cobertura de tule posta discretamente dentro da cúpula das boleiras impede a entrada de insetos e se tornou um diferencial para a produção do trio. “Se faltar, as pessoas reclamam, principalmente na Fenearte. Costuma ser a primeira coisa que acaba”, afirma José Carlos.

Para deixar a fibra da cana-brava pronta para o trançado, os irmãos, primeiramente, têm de colhê-la na mata. No entanto, o material, segundo ambos, está em perigo. “Antes, colhíamos a cana perto de casa e não faltava em canto nenhum, mas, agora, precisamos andar de quatro a cinco quilômetros. Por causa da idade, muitas vezes não temos mais força e precisamos pagar para outras pessoas fazerem esse trabalho. Nem sempre temos dinheiro para isso. A destruição dos mangues, onde a planta costuma crescer, também preocupa”, alerta Lourenço.

Após conseguirem a fibra da cana-brava, os irmãos precisam desbastar, ou “lavrar” o tronco da cana com uma faca peixeira. Os galhos e o miolo do tronco não servem. Apenas a parte macia, mais externa, é usada para cestaria. Um tronco pode ser dividido em quatro, seis ou oito partes, dependendo da grossura dele. Para tratar a fibra, os irmãos confeccionaram uma ferramenta rudimentar, com duas facas e um cavalete, para igualar o tamanho das tiras. Uma vez prontas, segundo Lourenço e José Carlos, uma peça feita por eles pode durar de dez a 15 anos.

Além do perigo de acabar a matéria-prima com a qual trabalham, o reconhecimento pelo ofício é outra preocupação dos irmãos, que estão na Fenearte com o nome de Cestaria Luna. Ambos chegaram a repassar os conhecimentos para outros artesãos e entraram em contato com o projeto O Imaginário, da UFPE, mas a parceria foi desfeita. “Tudo o que temos veio do artesanato, mas gostaríamos de ter mais apoio e mais gente para nos ajudar, pois, com mais pessoas, podemos dar conta de encomendas maiores. Também queríamos voltar à Alameda dos Mestres, onde estivemos em 2013, pois o trabalho tem qualidade para isso”.

OUTROS POLOS

Cachoeirinha, cidade vizinha a Altinho, é grande fornecedora de artigos de couro, especialmente para montaria, e, no Sertão, a região do Araripe é outra grande produtora de artigos dessa espécie, como chapéus e gibões, especialmente em cidades como Serrita e Ouricuri. Já em Goiana, a produção de cestaria cana-brava é continuada por outro grupo de artesãos, apoiados pelo projeto O Imaginário, da UFPE, também com presença na Fenearte. Águas Belas, no Agreste, tem uma produção de cestaria ligada à população indígena do município.

 

Um dos símbolos do artesanato nordestino

Couro é amplamente usado na produção de Altinho

Couro é amplamente usado na produção de Altinho

Em Altinho, no Agreste do Estado, o trabalho artesanal com o couro tem menos de dez anos, mas também respeita a vocação da localidade. As cidades de Cachoeirinha e o distrito de Serra dos Ventos, em Bezerros, são os principais fornecedores da matéria-prima da região. A Associação de Artesãos de Altinho (Artesal) aproveita a disponibilidade para criar objetos utilitários como pesos de porta, marcadores de página, bloquinhos, além de bolsas e pratos feitos de couro de bode.

De acordo com a presidente da Artesal, Sidrailda Rutiale, o trabalho com o material começou a partir de uma parceria entre o Sebrae e a Prefeitura de Altinho. “Somos 25 associadas e sete delas trabalham com o couro. Há quatro anos, tivemos uma especialização para aperfeiçoar o uso do material por percebermos que ele tem uma boa aceitação”. O incremento da renda é um efeito colateral do trabalho com o artesanato, pois quase todas as integrantes da associação eram, antes, donas de casa. “Estarmos juntas em uma associação é bem melhor do que estarmos cada uma por si”, completa Sidrailda.

A confecção dos artigos em couro obedece a uma ordem rígida. Após comprarem o couro já curtido, cada peça é posta embaixo de um molde e riscada a lápis. Feito o contorno, a peça é cortada, colada, se necessário, e, depois, “vazada”, ou seja, furada para ter o acabamento, composto por pequenas tiras de couro costuradas. Além de serem vendidas no Centro de Artesanato de Pernambuco, no Recife, as peças são disponibilizadas todo segundo domingo do mês na feira Mimos da Terra, realizada em Altinho.