Natureza entalhada

Com cinzel, martelo e até ferramentas improvisadas, artesãos transformam pedaços de madeira em esculturas das mais diversas formas e tamanhos

Ao longo de todo o Estado, a natureza oferece dádivas preciosas a quem sabe aproveitá-la com sabedoria. Da Região Metropolitana do Recife ao Sertão, a vegetação do estado é a matéria-prima de obras esculpidas para dar vida a uma miríade de universos em madeira. Santos, animais, homens, mulheres e figuras sobrehumanas são apenas algumas das figuras que os artesãos e artistas populares conseguem ver a partir do material, escolhido como tema da quarta reportagem da série Mãos à Arte. Nesta página, três representantes do Litoral, Agreste e Sertão, selecionados para a Galeria dos Mestres da Fenearte, deixam entrever um pouco de sua dedicação ao ofício de criar a partir das riquezas do mato.

José Abias da Silva, 48 anos, nascido e criado no Engenho Novo, em Igarassu, Região Metropolitana do Recife, tem facilidade espantosa para ver arte nos galhos que colhe nas redondezas de casa. O terreno onde mora, de dois hectares, foi ganho por sua mãe há mais de 40 anos por serviços prestados como doméstica na região. O local mal parece estar a 20 quilômetros do centro do Recife: com árvores frutíferas e animais andando livremente pelo terreno, o clima é de sítio no Interior. É nesta tranquilidade que Mestre Abias desenvolve suas obras.

Antes de se tornar artista popular, ele trabalhou como garçom, vigia e pedreiro, mas nunca deixou totalmente de lado a escultura em madeira, habilidade descoberta na infância, por não ter dinheiro para comprar brinquedos. “Já fiz artesanato com coco, com sementes, aí um amigo meu me deu um galho de araçá para eu criar alguma coisa. Esculpi um passista e, daí, me concentrei em galhos e raízes. Trabalho com todas as madeiras. Eu as reciclo, pego o que vejo. Muita gente capina e limpa os terrenos perto da minha casa e saio atrás das sobras. Às vezes olho para o galho e já sei como a peça pronta vai ficar. Outras vezes, a ideia vem depois”.

Mestre Abias em casa que se tornou depósito para suas peças, em Engenho Novo, Igarassu - Foto: Peu Ricardo

Mestre Abias em casa que se tornou depósito para suas peças, em Engenho Novo, Igarassu – Foto: Peu Ricardo

O trabalho é demorado e precisa respeitar os ciclos da natureza. Quando a madeira está verde, é necessário deixá-la secar e, na sequência, lixar. O resultado aparece na forma de bateristas, violonistas, tocadores de berimbau, sanfoneiros, além de passistas. A criatividade do mestre também o faz esculpir animais, como iguanas, tatus, macacos, bichos-preguiça e beija-flores, e até móveis, como cadeiras e suportes para mesas. As rodas-gigantes, de vários tamanhos, também impressionam pela riqueza de detalhes. Dependendo do tamanho, elas podem levar um mês inteiro para ficarem prontas. Os instrumentos para fazer tantas peças são adaptados de ferramentas do dia a dia, como furadeira e faca de cozinha, que compensam a falta de equipamento profissional de marcenaria.

Em sua casa no Engenho Novo, ele mora com a mãe, já aposentada, e a irmã, que não trabalha com artesanato. Às vezes, Abias conta com a ajuda da namorada, Celina Vital, outra artesã das redondezas. O local, por sinal, tem outros nomes que trabalham com madeira: Moizés Vital, irmão de Celina, e um primo de ambos, Roberto Vital. O artesão também tem um discípulo, Márcio, casado com uma prima sua. “Ele é muito prestativo e habilidoso. A gente aprende junto. Trocar ideia é muito bom. Acho que você não ensina uma pessoa a ser artista. Um artista simplesmente descobre o outro”. Celina, por sua vez, começou a criar flores de madeira, especialmente girassóis. “Ela não tinha muito gosto em esculpir, mas se convenceu depois de vender bem”, lembra Abias.

O artesanato deu a Mestre Abias condições de construir uma casa de alvenaria, em contraste com a casa de taipa onde foi criado e que hoje serve de depósito. O próximo passo é terminar a reforma da residência e concluir seu ateliê, bem ao lado. O trabalho exclusivo com artesanato começou em 2005, mas foi o destaque no Salão de Arte Popular da Fenearte, em 2007, 2008 e 2009 que deram o estímulo decisivo para o artista se manter nesse caminho. “Lidar com arte, para mim, é terapia. Hoje, trabalho o dia todo, do amanhecer até o Sol se pôr, porque gosto de ficar ao ar livre e aproveitar a luz natural. Quando eu me ocupava com outras coisas, era meio estressado. Hoje, trabalho muito mais do que em firma, mas gosto muito do que faço. Não tem nada melhor”.

Ex-votos com traços tribais

Valfrido de Oliveira César, o Mestre Fida, de 59 anos, é outro artista popular que transformou uma brincadeira da juventude em fonte de sustento. Oriundo do distrito do Cavaco, área quilombola do município de Garanhuns, ele apresenta obras inconfundíveis, esculpidas em amarelo, madeira da região. “Comecei a fazer coisas da minha cabeça, mesmo. Quando outro artista, Wagner Porto, foi morar no meu distrito, ele me estimulou a fazer mais peças. Um dia, fiz um homem-cata-vento. Coloquei no vento e os braços dele giraram”.

Segundo o Mestre Fida, a valorização do seu trabalho teve grande impulso graças à falecida arquiteta Janete Costa (1932-2008), conterrânea de Garanhuns e grande incentivadora do artesanato pernambucano. “Disseram para mim que tudo o que ela tocava virava ouro. Lembro de Janete ter dito que não havia nada parecido com o meu trabalho em Pernambuco. A partir dessa bênção, comecei a vender de verdade”. A semelhança dos ex-votos de Fida com os moais, estátuas em pedra da Ilha de Páscoa, no Chile, é algo que não passa despercebido. “Nunca tinha ouvido falar nisso antes de me falarem e mostrarem”, afirma o artesão.

Além dos ex-votos e dos icônicos homens-cata-vento, Fida cria barcos e santos, sempre mantendo traços rústicos e facilmente identificáveis, quase tribais. Em seu ofício, ele mantém a essência da madeira e conserva os nós, as falhas. Usa apenas selador para dar acabamento às peças. Assim como foi ajudado, ajuda um discípulo, Mauro Firmino, a encontrar a própria identidade artística. Como morador de localidade quilombola, Fida ouve muitas perguntas sobre sua origem, mas ele traz um pensamento particular sobre sua identidade. “O pessoal pergunta se eu sou preto ou branco. Digo que sou incolor, porque sou as duas coisas. Meu pai é branco e minha mãe é negra”.

Santas sertanejas para os papas

As voltas que o mundo dá fizeram a obra do artesão Manoel Cordeiro Sá Filho, nascido em Floresta e radicado em Ibimirim, no Sertão, representar o Brasil duas vezes no Vaticano, com obras dadas de presente ao papa João Paulo II (1920-2005) e a Bento XVI. Ele não poderia adivinhar isso há 32 anos, quando, em visita a uma de suas irmãs, viu o cunhado, de nome Enoque, trabalhar com artesanato, entalhando madeiras. Pensou que este também poderia ser seu destino e voltou de vez a Pernambuco para aprender o ofício. Depois disso, a alcunha de Manoel Santeiro se tornou parte integrante de sua vida, assim como ocorreu com outros artesãos da cidade que escolheu para viver.

A umburana, madeira resistente e que proporciona bom acabamento, é o ponto de partida para suas obras. São Jorge, Santo Antônio e imagens sacras como A última ceia povoam sua casa-ateliê. No entanto, sua imagem preferida é Nossa Senhora da Conceição. “Ela tem muitos detalhes, dá para trabalhar bem”. No ofício, Manoel garantiu a continuidade de sua arte com a ajuda do filho, Marcelo, com quem passou a dividir os dias de trabalho. Seu talento fez a vida do ex-agricultor e ex-operário em São Paulo ter uma reviravolta bem-vinda. “Essa arte nos traz alegria, além de embelezar qualquer lugar. O artesanato me faz ter o suficiente para viver”, afirma Manoel.