Brincando de fazer arte
Transformar um pedaço de madeira, uma lata ou um corte de pano em objeto lúdico, que encanta, diverte e aguça a imaginação é uma ocupação levada muito a sério pelos artistas populares que fazem brinquedos. Em Pernambuco, a Zona da Mata Norte e municípios do Agreste, como Gravatá e Bezerros, se transformaram em verdadeiros polos desse tipo de produção feita à mão, onde se pode encontrar objetos de desejo para crianças de todas as idades: mané gostoso, roi-roi, marionetes, carrinhos. Em cidades como Carpina, Glória do Goitá e Lagoa do Itaenga, isso inclui também uma “brincadeira” reconhecida como um dos componentes mais instigantes das artes cênicas brasileiras: o mamulengo. Ermírio José da Silva, o Mestre Miro dos Bonecos, conseguiu o título depois de décadas trabalhando na produção de brinquedos populares, além de ser bonequeiro e mamulengueiro. O artista, que vai participar da Fenearte no Salão dos Mestres, se interessou pelo mamulengo a partir dos 7 anos, quando viu uma apresentação do falecido Mestre Solon (1921-1987). “Me interessei em fazer um boneco. Quando cheguei em casa, peguei um cabo de vassoura e fiz o primeiro mamulengo de luva. Peguei a meia de um irmão e fiz a roupa dele”. A ação marcou o início de uma trajetória que incluiu viagens ao Brasil e ao Exterior para mostrar seu leque variado de talentos na cultura popular. Até em novela seus bonecos apareceram, o que se tornou motivo de orgulho para toda a família. Os trabalhos são vendidos em Olinda, na Casa da Cultura, no Centro de Artesanato, na Feira de Boa Viagem e em Porto de Galinhas.
A esposa, os dois filhos, a nora e o genro de Miro o ajudam no que é o único sustento da casa. Antes de se dedicar à arte popular, ele já foi zelador, vendeu coco na praia, lata, vidro, arame. “Sempre buscava algo para ganhar dinheiro”, diz. Entre os brinquedos que passou a fazer, estão cobrinhas, esconde-esconde (em que o corpo de um boneco é mostrado ou escondido por meio de uma haste), araras de madeira e de garrafas pet, marionetes, bonecas de pano em tamanho natural, feitas para dançar. Cada uma leva 15 dias para ser feita e Miro também dança com elas. Para a Fenearte, ele já inventou até um “pé-de-mamulengo”, objeto de madeira no qual mamulengos eram os galhos, e outras movidas a manivela, através da qual bonecos de madeira ganham movimento.
A imaginação o levou a diversificar as criações, mas os mamulengos começam com a mesma matriz: o mulungu, madeira maleável que dá origem aos personagens, ou figuras, da brincadeira. Para fazer uma peça, Miro deixa a tora de madeira quadrada, depois talha, lixa, passa querosene e, em seguida, pinta com tinta lavável branca para, então, usar a cor apropriada para cada figura. “Aqui, a gente usa arame, prego, tinta, cola, pano e que é sempre chita. O querosene é para não entrar bicho”.
Em 1999, Miro criou um mamulengo batizado de Novo Milênio, que se apresenta em locais como escolas. Na brincadeira, cuja duração é de aproximadamente uma hora, ele canta e toca três instrumentos – um deles inventado por ele, uma bateria feita com material reciclado. As histórias, ou ele inventa ou se inspira nas narrativas criadas por outros mestres. Ele também compõe as próprias músicas e as guarda na cabeça. “Toda pessoa que faz um boneco quer mostrar como ele é. Eu precisava apresentar minhas criações. Faço todas as figuras. Só não tem o diabo, não gosto”. Em seu ofício, Miro engloba muitas habilidades: é cantor, compositor, dançarino, artista plástico, ventríloquo e tem uma ligação especial com as criações. “Brinco com toda peça que faço”.
Biu Laboredo
O artesão do Mané Gostoso
Severino Gomes, conhecido como Biu Laboredo, 56 anos, seguiu caminho semelhante ao da maioria dos artesãos e artistas populares: o de transformar as dificuldades em motor para a criatividade. Nascido e criado em Bezerros, começou a dar vazão à imaginação aos oito anos. “Eu morava em um sítio, não tinha com que brincar. O primeiro brinquedo feito por mim foi um boneco de mané gostoso cortado em faca. Acho que fazer brinquedos está no sangue, porque o tio-avô da minha mãe já fazia isso por prazer. Ela comentava isso e fui colocando esse assunto na minha cabeça”. O menino que passou a fazer os próprios brinquedos por falta de recursos se dispõe, hoje em dia, a ensinar o ofício. Na Fenearte, Biu vai oferecer uma oficina de brinquedos populares, com ênfase no roi-roi e no mané gostoso, além de ter um estande próprio, o Laboredo Artesanato.
Biu também testemunhou mudanças na forma de se encarar o ofício. A preocupação com o meio ambiente e o surgimento de uma cadeia produtiva voltada ao setor ganharam impulso. “Todos os meus brinquedos são de madeira, trabalho apenas com as de reflorestamento. Quando comecei, tudo era no anonimato. Hoje, com as feiras de artesanato, a divulgação é melhor”. As vendas de Biu se concentram em manés gostosos e em carrinhos, além de produtos de marcenaria voltados a crianças, mas ele tem outro projeto em vista. “Antes, fazia até oito mil peças por mês. Hoje, a idade não ajuda, produzo por volta de mil. Mesmo assim, quero fazer algo novo para mim: teatro de bonecos”.