Modelar, um verbo transitivo

Quando Mestre Vitalino começou a ficar conhecido com suas peças de barro, nos anos 1940, ele transformou a identidade de um estado inteiro, mesmo sem ter total consciência disso. Os louceiros e escultores populares espalhados por todo o estado de Pernambuco, que vendiam o fruto de seu trabalho nas feiras do interior, passaram, aos poucos, a serem vistos como pessoas dotadas de talento e criatividade artísticas. O caminho para isso foi acidentado, mas cidades como Caruaru, Tracunhaém, Belo Jardim, Petrolina e Cabo de Santo Agostinho passaram a ser conhecidas também pela beleza de sua arte popular no barro. O terceiro dia da série Mãos à Arte traz três histórias que representam esse material.

 

Das louças
às cabeças de argila

Foto: Peu Ricardo/DP

Foto: Peu Ricardo/DP

A história de Cida Lima, moradora do Sítio Rodrigues, distrito de Belo Jardim, no Agreste, é um exemplo acabado do poder transformador da arte popular. Sua história com o barro começou aos 7 anos, quando começou a fazer panelas e jarras para vender na feira da cidade. Cada peça era vendida por R$ 0,40. “Às vezes, a gente não vendia nada”, lembra a artista.

Esta história guarda grandes semelhanças com as de outras louceiras da região. No entanto, a partir de 2005, várias delas passaram a ter o acompanhamento da arquiteta Ana Veloso, que as orientou a realizar peças mais decorativas e autorais. Daí, surgiram, além das panelas, pratos, ladrilhos e fruteiras, além das suas famosas cabeças de barro vermelho, ideia de um dos quatro filhos de Cida. A produção dela e de outros artistas de Belo Jardim também passou a ser vendida no Centro de Artesanato Tareco & Mariola. “Ana pediu para que a gente fizesse peças para a abertura do centro, mas a gente não acreditava que fosse dar certo. Ganhei R$ 960 e nunca tinha visto tanto dinheiro. Nunca tinha pego nem em uma nota de R$ 100”.

Atualmente, o carro-chefe da produção de Cida são suas cabeças, de traços simples e elegantes. As peças são confeccionadas em vários tamanhos: a de 30 centímetros é vendida por R$ 30. As de 80 centímetros custam R$ 80 se compradas diretamente à artesã e podem ser usadas para uma pessoa sentar, tamanha a resistência delas.

“No primeiro ano que participei da Fenearte, em 2005, levei 30 cabeças e todas foram vendidas. Este ano, vou levar 300. Hoje vendo em São Paulo, Gravatá, no Centro de Artesanato de Pernambuco, mas já vi minhas cabeças até em novela”.

 

Historiador com
alma de artesão

Mestre Zuza diz ter criado “barroco contemporâneo”

Mestre Zuza diz ter criado “barroco contemporâneo”

Mestre Zuza, nome pelo qual o artista popular José Edvaldo Batista, 57, é conhecido, pertence a uma família tradicional de artistas do barro em Tracunhaém. Os avós vendiam panelas no Recife e uma das tias, Severina Batista, também ficou conhecida por essa habilidade. “Comecei a trabalhar aos 14 anos, como ajudante em olarias, e fiz trabalhos mais voltados para o decorativo, o lúdico, mas me descobri santeiro”, relembra.

Ele considera ter criado estilo próprio, o “barroco contemporâneo”. As roupas com as quais “veste” os santos imitam a textura da estopa, para lembrar o voto de pobreza que eles fazem. Flores lembram as rendas de bilro e o trabalho de antigos artesãos de Tracunhaém. O resplendor das esculturas remete ao cocar dos índios e aos maracatus da Mata Norte.

“Fazer santos é fantástico. Cada um tem um rosto diferente, não consigo me repetir. Vou descobrindo expressões diferenciadas no sorriso, no humor”, afirma. As ferramentas de trabalho são simples: caneta, palito de churrasco, palito de dente.

Zuza é considerado Patrimônio Vivo de Tracunhaém e dá aulas de artesanato na cidade há 20 anos. Na Fenearte, faz parte da Alameda dos Mestres e já ganhou o segundo lugar no prêmio do primeiro Salão de Arte Religiosa, neste ano. Sua preocupação em repassar a atividade esbarra em um preconceito ainda existente no meio. Neste sentido, ele está em um papel singular, por ter se formado em licenciatura em história pela Universidade de Pernambuco (UPE). “Tem gente que se orgulha de ter nível superior e não quer trabalhar no barro. Por que isso? Francisco Brennand, por exemplo, é rico e trabalha com barro”.

 

Carrancas de mãe
para filha

Foto: Peu Ricardo/DP

Filha de Ana das Carrancas, Maria mantém legado

A artesã Maria da Cruz Santos, de Petrolina, não esquece das palavras da mãe, Ana das Carrancas (1923-2008), quando ela se deu conta de que a filha poderia dar continuidade ao seu legado. “Eu devia ter 6 ou 7 anos e trabalhamos juntas durante três dias em uma encomenda de 500 peças. Minha mãe me deixava fazer apenas parte do trabalho, mas resolvi fazer uma surpresa: um barco completo. Quando ela viu a peça pronta, se emocionou e disse: ‘agora tenho alguém para me ajudar’”.

Desde então, Maria da Cruz se dedica a moldar as barcas e as carrancas de barro que fizeram a fama da mãe. Ela é acompanhada no trabalho pela irmã, Ângela Lima, que se inspira nas peças de Ana mas adiciona à sua arte outras referências, como o artista gráfico holandês E.C. Escher. “É uma história de muita luta e muito amor. Tem horas que é como se eu estivesse vendo a mão dela pegar no barro. Isso me dá mais ânimo a cada dia. Hoje, o barro tem uma dimensão grande. Hoje, ele está na jazida e ninguém valoriza. Quando é tratado feito peça, vira presente para outra pessoa, divulga nossa região”, afirma.

Se depender das duas irmãs, a excelência no trabalho com o barro vai passar para outras gerações. O filho de 13 anos de Ângela, Edgar, já está sendo preparado para administrar o Centro de Cultura Ana das Carrancas, inaugurado em 2000 e convertido em ponto turístico da cidade sertaneja. As duas irmãs trabalham no local, com salas de arte, dormitório, loja e espaço para oficinas sobre o barro.