Muito pano para manga

Cada agulha, cada linha e cada trama que um artesão usa para fazer o trabalho ajuda famílias inteiras a garantir o sustento em todas as regiões do estado. O trabalho manual com tecidos é um dos que mais se espalhou por Pernambuco e se tornou traço distintivo de cidades inteiras. A renda e a tapeçaria são produto de um trabalho de excelência e de conquistas coletivas.

A renda renascença, marca de Pesqueira e Poção, no Agreste, é exemplo de como uma região pode se mobilizar em torno do artesanato. Quem circula pelas duas cidades pode ver rendeiras trabalhando à sombra, na calçada de casa. Uma das responsáveis pela disseminação do ofício é Odete Souza, de 88 anos, uma das primeiras a aprender e, depois, ensinar o trabalho que exige método, paciência e olhos de lince. É preciso desenhar os riscos em papel seda e, em seguida, passar para um papel grosso, alinhavar o desenho para, só então, arrancar o papel que serviu de molde.

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Dona Odete é representante de um trabalho que se profisissionalizou a ponto de ser exportado, e a atuação de lojas como a Renaissance e Fátima Rendas ampliaram o público-alvo da renda. O resultado era difícil de prever no início. Segundo a rendeira, a renascença foi levada primeiro a Poção por uma garota chamada Maria Pastora, que aprendeu o ofício no colégio de freiras onde estudava, em Olinda. Ela ensinou o básico das habilidades a outra garota chamada Lala, que, por sua vez, resolveu espalhar o conhecimento. “Ela chamou oito garotas para ajudar. Eu era a mais nova, tinha entre 10 e 12 anos, não lembro bem. Normalmente, trabalhávamos das 6h às 16h, numa casa onde só tinha a janela aberta. Era uma coisa meio escondida”.

Com a aceitação do trabalho e o aumento das encomendas, era preciso fazer até hora extra para honrar os compromissos, afirma a artesã, que estará na Alameda dos Mestres desta edição da Fenearte. “Era tanta encomenda que a gente trabalhava dia e noite. Em Poção, onde nasci, só tinha luz até as 22h. Para entregar o serviço, tínhamos que fazer serão e eu usava um candeeiro para fazer os pontos”. A fama aumentou e, ao se mudar para Pesqueira após o casamento, Odete ensinou renda durante 25 anos. “Quando começamos a aprender, havia poucos pontos, mas hoje há muitos, que nós mesmos criamos. Eu mesma inventava muitos. Tem os ‘dois amarrados’, ‘pipoca’, ‘abacaxi’”, completa.

Ao longo da trajetória, a rendeira testemunhou o quanto mudou a percepção do ofício pelos compradores. “Antigamente, a renda era barata, as pessoas não davam valor. Ela pagavam o equivalente a 60 reais por uma colcha grande. Hoje em dia, o preço está melhor, mas o preço do material para costura sobe toda semana.”

A satisfação de dona Odete ao fazer o trabalho se expressa ao negar o desejo da aposentadoria. “Tenho clientes em Maceió, Poção, Recife e Petrolina. Eu mesma costumo entregar as peças pessoalmente. Quando a gente faz renda, tira tudo quanto é ruim da cabeça. Às vezes, deixo de ir a uma festa para fazer renda, acho melhor. Já pensou eu sem fazer nada, como jumento sem mãe? Não posso ficar parada de jeito nenhum”.

Saindo do Agreste para a Zona da Mata, outra experiência, desta vez, coletiva, mostra o quanto Pernambuco tem vocação para o trabalho com tecidos. A Associação de Tapeceiras de Lagoa do Carro (Astalc) é conhecida pelo trabalho com fio de lã nos mais variados produtos: almofada, lavabo, passadeira, tapetes de sala, de quarto e pesos de porta. Os produtos podem ser encontrados no Centro de Artesanato de Pernambuco, no Recife e na própria sede da associação, localizada na PE-90. O trabalho deu tão certo que Lagoa do Carro passou a ser conhecida como Terra do Tapete.

Mais tecidos

 

SERTÃO – TACARU   A cidade, no Sertão de Pernambuco, tem a produção de redes, mantas e tapetes concentrada no distrito de Caraibeiras.
AGRESTE SETENTRIONAL   Passira se especializou no bordado manual em peças de cama e mes a e Orobó ficou conhecida pela renda frivolité, técnica francesa.
RMR – TIMBI   A Tapeçaria Timbi é uma associação de artesãs localizada em Camaragibe, na RMR. Foi criada em 1988 para vender tapetes, almofadas e outros produtos e tem cerca de 20 associadas.

Próximo a Carpina, na Mata Norte, onde também vive o conhecido Mestre Saúba, está localizada Glória do Goitá, terra do Mestre Zé Lopes, e localidade cuja cultura está intimamente ligada ao mamulengo. A intensa atividade dos bonequeiros e mamulengueiros levou à criação da Associação Cultural de Mamulengueiros e Artesãos de Glória do Goitá, em 2002, que mantém o Museu do Mamulengo do município. A presidente da associação, Edjane Lima, conhecida como Titinha, afirma que parte dos integrantes da entidade vivem do artesanato e um quarto do valor de cada peça vai para a manutenção das atividades do grupo. Os itens exibidos lá também são vendidos no Museu do Catete, no Rio de Janeiro e, na Fenearte. O Museu do Mamulengo abre de segunda a sábado, das 9h às 12h e das 14h às 17h e aos domingos, com agendamento, das 14h às 17h. O espaço expositivo está localizado na Rua Celto Campelo, s/n, Glória do Goitá.

FATURAMENTO   A Associação de Lagoas do Carro conta com 16 associadas e cerca de 50 famílias se beneficiam de sua atuação, com um faturamento próximo de R$ 100 mil por ano. As portas da sede ficam abertas das 9h às 16h30 e quem passa por lá encontra sempre alguma artesã trabalhando. Mesmo assim, parte importante deste ofício é feita em casa, com a ajuda de maridos e filhos.

Terezinha, inspiração

As tapeceiras passaram a existir em Lagoa do Carro a partir da atuação de uma artesã chamada Terezinha Lira, que passou o conhecimento a outras mulheres do município. No entanto, os atravessadores se tornaram um empecilho para elas terem mais controle e lucro sobre a produção. “Hoje, compramos toda a matéria-prima diretamente dos fornecedores. Nossa identidade mudou. Encontramos uma forma de ganhar dinheiro e ter um trabalho. Nosso artesanato fez o município ficar mais conhecido”, afirma Risolange Rodrigues, presidente da Astalc.

Para quantificar o trabalho, as tapeceiras da Astalc usam como medida o metro quadrado. “Cada metro leva um mês para ficar pronto, pois todas as etapas são feitas de forma manual. As telas dos tapetes são preenchidas com lã e depois recebem um revestimento de tecido de algodão. O produto dura gerações. Vemos mães trazerem as filhas para comprar nossos tapetes”.

Para aperfeiçoar seu trabalho, a Astalc contou com apoio do Sebrae e do projeto de design O Imaginário, da UFPE. As iniciativas, segundo Risolange, também se somam ao reconhecimento da profissão de artesão como um todo, regulamentada pela Lei 13.180, sancionada em 2015. “Foram mais de 30 anos de luta para reconhecer a atividade como profissão. Nosso sonho é nos aposentarmos como artesãos”.