Quando era preciso pedir licença

Viver em sociedade é estar num constante cruzamento. Histórias, sentimentos, ideologias, crenças: todo dia milhares de vidas passam por nós sem a gente perceber. Um ônibus, uma sala de espera, uma rua movimentada: quantas centenas de subjetividades nós ignoramos por dia?

De vestido largo com estampa indiana e cabelos pintados de vermelho, uma senhora caminha em minha direção por ruas de barro e sem saneamento. Joana me abraça e convida para entrar no espaçoso salão de seu terreiro. É sábado e no campo de futebol vizinho ao Ilê Asé Oyá Egunytá uma pelada junta crianças e adolescentes da Cidade Tabajara, periferia de Olinda.

“Eu cheguei aqui e isso era um matagal só”, comenta ela. Olho ao redor e não é difícil imaginar o lugar, hoje repleto de casas simples, coberto pelo mato. O ano era 1979, época em que Joana já tinha “15 anos de santo feito”. Mais conhecida como Mãe Jane de Oyá do que pelo nome de batismo, ela é “uma das pessoas notórias do candomblé pernambucano”, explica o pesquisador do Arquivo Público do Estado e filho de santo da Nação Xambá, Hildo Leal da Rosa.

A história de Mãe Jane dentro das religiões afro começa em 1956, aos 11 anos, quando um transe mal interpretado pela família a levou ao Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. “Eu não lembro de nada, só sei que no outro dia acordei na Tamarineira”. O procedimento era comum na época, quando o candomblé e a umbanda não eram “nem religião”.

“A gente era denominado de seitas. Seitas africanas” queixa-­se Hildo, falando do constrangimento que era para os babalorixás e ialorixás ter que pedir à Delegacia de Jogos e Costumes ­ que fiscalizava cassinos, prostíbulos e “vadios”­, uma licença para funcionamento.

Apagamento histórico e isolamento

O processo de legitimação da religiosidade afro­brasileira é repleto de repressão e preconceito. A África que se recriou no Brasil ocupa pouco espaço nos livros de história e, quando se fala dos negros, é quase como se sua vida começasse dentro dos navios negreiros; como se eles não tivessem pertencimento. A pedagogia brasileira, em nome da criação de uma cultura que se pretendia mais branca e europeia, marginalizou o papel dos povos africanos e ameríndios na formação de nossa identidade, atuando mais na naturalização de preconceitos do que no seu combate.

Aos negros restou o sincretismo e a busca por legitimidade dentro dos moldes cristãos dominantes. Para Rosalira Oliveira, doutora em antropologia e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, é impossível falar de candomblé sem falar de catolicismo. “O catolicismo era a religião oficial do estado, então para um negro ser considerado cidadão, ele teria que ser católico”, comenta, sobre o período que também foi o de formação do candomblé. “As festas católicas eram o momento em que os negros tinham algum lazer. Nessas horas se organizavam festas de negros chamadas calundus, hoje consideradas precursoras do candomblé”, explica a especialista.

Ou seja, ao longo do calendário católico, organizavam-se festas nas fazendas onde já tinha uma roda de louvação para os orixás, com cantos em iorubá e uma organização semelhante às atuais. “Isso era encarado pela igreja católica e pelos senhores como sendo uma forma de escape”, explica Rosalira Oliveira.

Foto: Victor Germano

Foto: Victor Germano

Do calendário compartilhado e dos cultos disfarçados surge um sincretismo que é responsável tanto pela definição da forma como os cultos de origem afro irão se reorganizar no Brasil, como por determinar um duplo pertencimento que é característico dos povos de santo. “Minha criação católica fazia eu pensar que aquilo que eu sentia estava errado. Para eu entender que aquilo era o orixá dentro de mim demorou um tempo”, continua Mãe Jane. Coube a Dona Beata, mulher que trabalhava na casa da família dela na Iputinga, ver no transe algo além do psicológico. Meses depois do ocorrido, Beata a levou num terreiro de candomblé que frequentava, apresentando-­a a seu primeiro pai de santo, o babalorixá Artur Manoel da Costa.

Aos 13 anos, ela presenciou a festa do Divino, no Maranhão, e começou então uma busca por esse “divino interior que eu sentia, mas não sabia, nem ousava, explicar”. Aos 16, contrariando a mãe, e “seguindo seus instintos” começou a frequentar terreiros de candomblé. Em 1964, aos 19, cumpriu suas primeiras obrigações, tornando-­se filha de santo de Otila Paulina da Conceição, conhecida hoje na casa de Mãe Jane como Vó Otila de Oyá, a mãe da mãe da casa.