Com a adesão de parte da classe média escolarizada, a partir dos anos 1960, as religiões de matrizes africanas começaram a sair dos guetos e a se legitimar como religião, mas esse caminho tem sido tortuoso
Resgate contracultural da espiritualidade africana
A história de Mãe Jane se confunde com o processo de abertura social das religiões afro. Enquanto ela descobria dentro de si o divino que um dia a levou ao hospício, a sociedade também se abria às religiões de origem africanas. A partir dos anos 60, enquanto os europeus iam à Índia e descobriam a meditação, os gurus e o ioga, a classe média brasileira acampava na Bahia e acabava “descobrindo” a África.
A busca pelas raízes foi uma das características do movimento de contracultura brasileiro, que vê no candomblé um reduto cultural ainda pouco explorado. Este movimento é responsável não apenas por um “embranquecimento” da religião, mas também pela elevação do status social do candomblé, que começou então a deixar de ser visto apenas como uma “feitiçaria de negros” para se legitimar definitivamente como religião.
Segundo números do censo de 2010, a população de terreiro corresponderia a 0,3% dos brasileiros, com uma média de idade de 32 anos e uma porcentagem de 21,1% de negros. As estatísticas também mostram que mais de 90% dos candomblecistas e umbandistas brasileiros possuem pelo menos o ensino fundamental incompleto, com mais de 60% chegando ao ensino médio.
Segundo este levantamento, o povo de santo seria o segundo mais instruído entre os religiosos brasileiros, proporcionalmente falando – perde apenas para o grau de escolarização dos adeptos do espiritismo kardecista. Para o antropólogo Reginaldo Prandi, uma das maiores autoridades sobre o tema no país, esse alto grau de escolaridade está ligado justamente à entrada da classe média nas religiões de matrizes africanas depois dos anos 60.
“O kardecismo sempre foi uma religião intelectualizada. A própria ideia de evolução espiritual no kardecismo é um pouco confundida com a evolução intelectual. É muito diferente do candomblé, em que ainda há um grande número de pessoas que se declaram católicas – os mais pobres, mais apegados à tradição. A classe média se declara do candomblé. Por isso, estatisticamente, o elevado nível de escolaridade”, explicou o antropólogo em uma entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em 2005.
Mãe Jane descobriu a África nos terreiros do Recife e de Olinda. Entre 1966 e 1979, não fixou residência e morou de aluguel em diversos bairros até se mudar para a casa onde hoje fica o Ilê Asé Oyá Egunytá. Vivendo uma realidade mais prática, ela atenta para a necessidade de autoafirmação dos povos de santo. “As pessoas têm que saber que o candomblé está vivo. Então, quando o Censo bate na porta para perguntar a cor, tem que dizer que é negro. Nem preto, nem pardo – é negro, afrodescendente. E precisa dizer que é do candomblé também. Tem que se impor, tem que se afirmar.” Quando pergunto se ela encontrou o divino que procurava quando jovem, ela responde que sim, mas faz uma ressalva: “o divino está em todo lugar e de várias formas. Eu apenas encontrei o meu no candomblé”.