O batismo da seca

Por Ana Cláudia Dolores*

Desde quando as previsões do tempo passaram a anunciar continuamente o pior
para a região do semiárido pernambucano, a apuração feita de dentro da Redação
começou a tornar a cobertura jornalística rasa. Sim, já estávamos vivendo a
primeira grande seca do século e precisávamos, com urgência, sentir de perto o
que isso significava. Foi então que a editoria executiva do Diario decidiu
investir numa viagem de uma semana para o Sertão do estado a fim de retratar a
velha seca, porém, num novo milênio.

Partimos numa segunda-feira, às 6h, rumo a Salgueiro. No banco dianteiro do
carro, guiado pelo motorista Francisco, a repórter fotográfica Annaclarice
Almeida tentava traduzir em palavras as imagens que registraria das cenas que,
inevitavelmente, iríamos encontrar pela frente. Era a segunda vez que cobria o
tema. A primeira tinha sido há dez anos. Mas o entusiasmo em fazer aquele
trabalho era o mesmo de um principiante.

No meu caso, era só o começo da primeira cobertura da seca. A última vez que
havia visitado o Sertão a trabalho foi em abril de 2010, quando eu e a
repórter de Economia Juliana Cavalcanti encontramos um semiárido florescendo
por conta das obras do canal da transposição do Rio São Francisco e da
ferrovia Transnordestina que estavam a todo vapor. Dois anos depois, voltei ao
canal e deparei-me com um verdadeiro deserto. Os trabalhadores tinham ido
embora e, junto com eles, o sonho de levar água para o todo o Sertão.

Não foi preciso adentrar muito para começar a perceber a intensidade desta
seca. Já no Agreste, um pouco depois de Gravatá, era possível ver a vegetação
mudando de cor. Na beira da estrada, começaram a surgir os primeiros açudes e
cacimbas dando sinais de que, em breve, não passariam de uma lembrança.
Resolvemos parar em São Caetano, Sanharó e Belo Jardim e, desde aí, já tomamos
conhecimento do drama que se repetiria nas demais cidades do Agreste e do
Sertão.


Apesar do novo século, a seca era a mesma de sempre: severa e impiedosa. Nada
diferente do que li nos livros e jornais e mesmo ouvi nas rodas de conversa da
família, que tem raízes sertanejas. Nas zonas rurais de Salgueiro e Cabrobó,
que visitamos com mais intensidade, as histórias se repetiam: meu gado está
morrendo, o açude secou, a plantação não vingou. A única diferença que
percebemos entre a seca de antes e a atual é que, agora, a presença do estado
é maior nas comunidades mais carentes. A água chega de forma emergencial e o
sustento mínimo é garantido pelo Bolsa Família, o que ainda é muito pouco,
mesmo para quem não tem nada.

Das pessoas que encontramos pelo Sertão, uma conseguiu provocar em mim uma
profusão de sentimentos. O lugar era um típico cenário de filme. Em frente a
uma estação ferroviária desativada, cinco casinhas enfileiradas indicavam que
a rotina ali já tinha sido bem diferente da de hoje. O Sítio Caiera, em
Salgueiro, foi o que restou de uma vila abandonada depois que o trem deixou de
passar por lá. Resolvemos parar e, para a nossa surpresa, encontramos uma
família em uma das casas. Foi aí que conheci Albertina Maria da Conceição, a
rezadeira cuja história de vida conto, neste domingo, nas páginas do Diario.

Esse encontro foi rápido. Nesse dia, estávamos focadas numa tarefa pedida
pelos editores e não podíamos perder tempo com situações que não iriam render
para o cumprimento daquele objetivo. Ossos do ofício de repórter. Mas a
semente da inquietação já tinha sido plantada e não sosseguei até convencer
Annaclarice de que precisávamos voltar lá no dia seguinte, nosso último dia no
Sertão. Ela topou sem titubear.

Quando retornamos, encontramos uma Albertina surpresa por “ter sido lembrada”.
Talvez aquela senhora de 74 anos nem tivesse se dado conta do quanto foi capaz
de mexer tanto comigo quanto com Annaclarice. Voltamos não apenas pelo óbvio –
para o jornalista – de que personagens assim não se perdem, mas também porque
sentimos que nossa missão só estaria concluída depois dessa visita.

Apesar de doente e com quase nada a oferecer em casa, Albertina nos recebeu
como se fôssemos da família. Sentei na sala para conversar enquanto
Annaclarice matutava pelos arredores em busca do lugar ideal, da melhor luz e
da melhor composição para sua foto. Provando o café que fez especialmente para
nossa equipe, deletei-me com os relatos de uma mulher que viveu muitas secas e
que resistiu todo esse tempo de uma forma diferente. Uma criatura
verdadeiramente especial com um dom tão especial quanto ela.

No fim da entrevista, Annaclarice entrou na sala com um galho de pinhão-roxo
na mão. Era apenas para compor a fotografia, mas Albertina não queria saber de
simulações. Fez o sinal da cruz e começou a rezar a fotógrafa. Já com outro
galho, repetiu o ato comigo. Naquele momento, enquanto recebia sua reza,
rememorei passagens da minha infância – quando visitei uma benzedeira pela
última vez -, dos estudos na escola, dos perrengues na faculdade e dos dias
atuais, quando, assim como meus colegas, tenho que matar um leão por dia em
nome do jornalismo e tive ainda mais certeza de que fiz escolhas certas, tanto
pela carreira que sigo quanto pela decisão de voltar naquela casa.

Albertina se despediu da nossa equipe benzendo, de longe, o carro do jornal.
Foi com essa benção que nós também nos despedimos do Sertão. Para mim, a
experiência de visitar o semiárido com um olhar profissional, mas sobretudo
humano, neste cenário de seca, não poderia ter sido mais edificante. Voltei
com a sensação de ter crescido um pouco mais e com o desejo de reencontrar as
pessoas que visitei mas, dessa vez, para retornar com boas notícias.

*Repórter de Vida Urbana