Aqui vai mais uma crônica de Nelson Rodrigues, da coletânea O óbvio ululante, onde ele aborda a questão da desumanização do jornalismo em detrimento da objetividade.

 

Anteontem, falei dos idiotas. Sinto, porém, que disse muito pouco,
quase nada. O assunto foi apenas insinuado, e repito: — o assunto está
diante de nós como uma Sibéria imensa, à espera de que outros a invadam, e
a ocupem, e a fertilizem. E quem não percebeu a invasão dos idiotas não
entenderá, jamais, o Brasil dos nossos dias.

Sei que em todo o mundo é assim. Mas deixemos o mundo. Tratemos
do Brasil. Dizia eu, na minha confissão de anteontem, que Magé me fascina
mais do que o Vietnã. E, portanto, vou-me limitar aos idiotas da casa (o
Paulo de Castro que cuide dos internacionais).

Outro dia, morreu Assis Chateaubriand. Disse “outro dia” e preciso
fazer uma correção de tempo. Em verdade, morrera antes, muito antes de ser
enterrado. Aquele homem chumbado à cadeira, entrevado, de riso torto, não
era o Chateaubriand, era o anti-Chateaubriand, a negação do Chateaubriand. Mas a sua queda ocorreu no momento exato. Passara a época do “grande jornalista”. Sim, o “grande jornalista” teria de vagar, por entre as mesas, cadeiras e estagiárias das redações, como uma lívida figura sem função e sem destino.

Portanto, quem matou Chateaubriand não foi a trombose, mas a
inatualidade. Pouco antes, morrera J. E. de Macedo Soares. Outro “grande
jornalista”. Eu me lembro do que dizia Gilberto Freyre: — “Como escreve
bem! Como escreve bem!”. E, por isso mesmo, porque escrevia bem, tornara-se mais secundário, mais irrelevante, em nossa imprensa moderna, do que uma estagiária. Quando morreu, teve nos jornais uma meia dúzia de linhas.Pompeu de Sousa, Danton Jobim e mais três ou quatro acompanharam o seu enterro. O “senador” era um estilista e, como tal, tornara-se mais antigo do que o fraque de Pinheiro Machado.

Penso no meu pai. Um artigo de Mário Rodrigues era lido, em voz
alta, nos botecos mais analfabetos. E a pura delícia auditiva de sua prosa
aumentava a tiragem do jornal em trinta mil exemplares ou mais. Era a
época em que uma boa frase derrubava um ministério. As instituições
tremiam com uma penada do “grande jornalista”.
Ainda outro dia, um velho profissional chamou-me a um canto.
Simplesmente queria sussurrar-me este conselho de uma sabedoria infinita:
— “Não escreva bem, nunca, em hipótese nenhuma”. Ao dizer isso,
arquejava de uma bronquite velha, nostálgica, de passadas gerações. E, de
fato, o que importa, no momento, é ser idiota.

Nas minhas notas de anteontem, escrevi que o idiota sempre se
comportara como idiota. Era de uma modéstia exemplar, de uma humildade
total. Não em nossa época. De repente, em nossa época, o idiota explode. Na
minha infância, não passava do curso primário e já se dava por muito
satisfeito. Nascia, crescia, namorava e morria sem jamais pensar por conta
própria. Podiam pichar-lhe o túmulo com a seguinte inscrição: “Nunca
pensou”. O idiota era quase um santo.

O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o
idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no
passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores
gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as
casacas vestem os idiotas. E mais: — eles têm as melhores mulheres e usam
mais condecorações do que um arquiduque austríaco.

Não sei se me entendem e se concordam comigo. Mas é o próprio
óbvio. A olho nu, qualquer um percebe a ascensão social, econômica,
cultural, política do idiota. Outro dia, passou por mim um automóvel das
Mil e uma noites, sim, um desses Mercedes irreais, com cascata artificial e
filhote de jacaré. Lá dentro ia um idiota flamejante.

Desde Noé e antes de Noé, jamais um idiota ousaria ser estadista. É
verdade que, na velha Roma, um cavalo foi senador. Mas o cavalo é um
nobre animal, de maravilhoso frêmito nas ventas. E nunca se viu um idiota
relinchar. Pois bem. Hoje, tudo é possível, tudo. Há idiotas liderando povos,
fazendo História e fazendo lendas. Mao Tsé-tung seria impossível em outra
época. Em nosso tempo, passa por ser um estadista gigantesco. Há rapazes,
aqui, que se dizem da “linha chinesa”. Embora a distância geográfica que os
separa, jovens brasileiros estão por conta de Mao Tsé-tung.

E, assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das
melhores mulheres — os nossos idiotas têm também os melhores cargos e
exercem as funções mais transcendentes. Eu disse que estão por toda a parte:
— na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como
na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas
pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o
sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
Dirão que exagero. Absolutamente. E é tão importante ser idiota, tão
decisivo, que já desponta a fauna, sem precedentes, dos “falsos cretinos”.
São rapazes inteligentíssimos, bem-dotadíssimos, alguns beirando a
genialidade. Pois bem. O sujeito, para viver, ou sobreviver, enterra o próprio
espírito, como as jóias de Raskolnikov. E, se for preciso, ele finge debilidade
mental e põe-se a babar na gravata, copiosamente.

Eu citaria o exemplo do Ferreira Gullar. Ex-poeta maravilhoso. Seu
livro A luta corporal ficou, se me permitem a ênfase, como um momento de
eternidade. Mas o Ferreira Gullar foi cercado, envolvido, triturado pelos
idiotas. E, hoje, só consente em ter espírito, à meia-noite, num terreno baldio, sob a luz de fúnebres lampiões.
[15/4/1968]