* Por Vandeck Santiago

Quando aconteceu o Tsunami eu estava com todas as minhas atenções voltadas para a
mandioca. Dormia pensando na mandioca e acordava preocupado com ela.

Explico.

Estávamos na última semana de dezembro e fazia dias que eu vinha preparando uma
série de reportagens sobre a planta.

Lembro que a ideia da matéria suscitou duas interrogações nas pessoas com quem
eu conversei: primeira, por que publicar uma reportagem no final do ano, época em que
todo mundo só quer saber de presentes e felicitações? Segunda, que esquisitice era aquela
de fazer uma reportagem especial sobre uma planta? Afinal, eu trabalhava para o Diario de
Pernambuco ou para a Globo Rural?

Bom, primeiro eu sempre acreditei que o que dá permanência a uma matéria não é a
data em que ela é publicada – é sua consistência.

Segundo, minha abordagem não seria agrícola somente, mas sobretudo histórica,
econômica e social. Matéria especial, creio eu, só vale a pena se trouxer novas luzes ao assunto
– seja a revelação de fatos até então desconhecidos, seja um enfoque pioneiro. Eu gosto de fazer
matérias que estão, como se diz no jargão jornalístico, “fora da pauta”. Enveredar por caminhos
que não foram percorridos, ou foram mas por trilhas diversas da minha.

A história da mandioca se prestava para tudo isso. É a planta que vem alimentando os
pobres do Brasil antes mesmo de a gente se chamar Brasil – quando os portugueses botaram os
pés aqui, os índios já se dedicavam ao cultivo da mandioca. Ao longo dos séculos, porém, ela
sempre foi tratada como coisa de pobre. Vejam vocês que na história do Brasil nós tivemos
vários ciclos: ciclo do açúcar, do ouro, do café, do diabo a quatro. Nunca da mandioca.

Minha reportagem a mostrava como a planta mais excluída do Brasil. Refazia sua
trajetória, desde descoberta do Brasil, até os dias de hoje, quando em forma de farinha vira
tapioca em restaurantes chiques. Também mostrava a variedade de uso que os produtos
originados da mandioca poderia ter em diversas áreas, como a farmacêutica, têxtil e cosmética.
Além disso, enfocava os seus entraves econômicos – um deles, que permanece até hoje, o da
(falta) de garantia de produção e a desorganização do sistema produtivo.

A primeira matéria saiu no domingo, dia 26 de dezembro – no mesmo dia o Tsunami
devastou Sumatra, na Indonésia. Neste dia e nos seguintes foi este o assunto que dominou as
atenções do Mundo.

Eu fazia parte desse mundo, mas minha atenção era dividida com a mandioca.

A série teve matérias ainda na segunda, terça e quarta-feiras. Falei da experiência
pioneira de Josué de Castro, que nos anos 50 usou a farinha de mandioca como remédio contra
os males da desnutrição, mediante o seu enriquecimento com proteínas, vitaminas e sais
minerais.

Descobri também o professor egípicio Nagib Nassar, da UnB (Universidade de
Brasília), cientista respeitado internacionalmente, criador da Supermandioca – uma mandioca
mais resistente e com três vezes mais proteínas, fruto do cruzamento de espécies silvestres com
a mandioca normal.

A reportagem acabou sendo reconhecida em prêmios. Um empresário do setor agrícola
sugeriu que eu a ampliasse e a transformasse em livro, coisa que nunca fiz. No final das contas,
a mandioca suportou o embate com o tsunami.

Claro que, como cidadão, também acompanhei o sofrimento das pessoas atingidas pelas
ondas gigantes na Indonésia e o debate sobre o fenômeno que entraria para a história mundial
dos desastres naturais.

Como profissional do jornalismo, porém, naqueles primeiros dias, meu interesse direto
era com uma planta que há mais de 500 anos não tem o seu valor reconhecido.

Embora aparentemente díspares, os dois assuntos servem para mostrar a riqueza do
jornalismo.

Não importa a dimensão do fato, não importa quando ele acontece, não importa se
interessa a uma aldeia ou ao mundo.

O que importa é que, se for notícia, merece ser contada.

* Repórter especial