Em Foco Burle Marx

Trabalhar com datas redondas é um recurso bastante comum no jornalismo. As efemérides servem para destacar algo que ocorreu no passado e suas implicações nos dias atuais. Neste 4 de junho, há 20 anos, o país perdia o paisagista Burle Marx, um artista que forjou seu estilo no Recife, como responsável pela modernização dos parques e jardins em 1934 (80 anos atrás, outra efeméride). Há oito décadas, ele já defendia mais espaços livres para a população de uma cidade que já tinha as crianças empoleiradas em apartamentos. Homem de visão é isso. Por isso foi tema do Em Foco do Diario da edição desta quarta-feira.

Arte ao relento

Paulo Goethe

Há exatos 20 anos morria Burle Marx, o homem que criou a partir do Recife um antídoto para quem vive “empoleirado” longe dos quintais

Para quem gosta de efemérides, aí vai: em um 4 de junho, o de 1994, o paisagista e artista plástico paulistano Roberto Burle Marx, 84 anos, morria  de insuficiência cardíaca, no sítio onde morava em Guaratiba, no Rio de Janeiro. Foi velado no seu próprio ateliê, em meio às alamandras, orquídeas e alpíneas que cultivava no jardim. Outra efeméride? Vamos lá: há 80 anos, em meados de 1934, Burle Marx assumia a chefia do Setor de Parques e Jardins da Diretoria de Arquitetura e Construção (DAC) do estado de Pernambuco. Sua missão: “criar um plano de aformoseamento e embelezamento da cidade do Recife”.
A mãe, Cecília Burle, era pernambucana. O pai, Wilhelm Marx, era alemão. Parceiro das ideias de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, Burle Marx deve muito ao Recife, apesar da recíproca não ser lá muito verdadeira nos dias de hoje. Ele regressou ao Rio de Janeiro em 1937, mas manteve seu vínculo com a capital pernambucana até a morte. Ao todo, concebeu 58 jardins e parques, entre públicos e privados, valorizando a floral tropical.
O Jardim da Casa Forte, antiga denominação da Praça de Casa Forte, foi o seu primeiro espaço público projetado, agora em processo de tombamento pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Da sua cabeça também saíram a Praça Euclides da Cunha (1935), o conjunto de jardins do Palácio do Campo das Princesas e Praça da República (1936), a Praça do Derby (1937), a Praça Ministro Salgado Filho (1957) e Praça Faria Neves (na entrada do Parque Dois Irmãos, 1958).
Para Burle Marx, um jardim ou parque moderno deveria atender a três preceitos: higiene, educação e arte. Em artigo publicado no jornal Diario da Manhã, no dia 22 de maio de 1935, ele descrevia o projeto de Casa Forte como um oásis para o recifense morador de uma cidade de clima quente e prédios altos. “O habitante urbano vem respirar um pouco de ar puro, cansado da luta diária nos escritórios acanhados, nas ruas asfaltadas e nos ambientes fabris. É nele que as crianças moradoras de apartamentos empoleirados, casas de quintais reduzidos, ou habitações coletivas, poderão encontrar um meio amplo para seus brinquedos, recebendo para suas trocas orgânicas, um ar desprovido de contaminação”. Era a estética com sombra, o verde sem suor.
Em uma cidade cada vez mais carente de áreas verdes e de espaços de lazer, as praças projetadas por Burle Marx apontam um caminho. É possível e necessária a criação de lugares para usufruto de toda a população, que sejam ao mesmo tempo pontos de aprendizagem. Em oito décadas, só fez aumentar no Recife o número de crianças moradoras de apartamentos empoleirados, só fez diminuir o tamanho dos quintais das casas, as que ainda há.
A arte de Burle Marx é pública e encontra-se ao relento. A conservação dos seus projetos sem as alterações de décadas anteriores já é uma vitória. Cabe ao poder público facilitar o acesso e o entendimento da obra. A secretaria municipal de Turismo realizou passeios guiados pelas principais obras do paisagista, cada uma com um tema regionalista característico das diferentes regiões do país. Um povo também se mede pela preservação dos seus jardins. Mesmo no dia a dia corrido e violento, vale a pena ir à rua, contemplar e preservar a paisagem criada por quem amou o Recife. Fica a dica.

P.S. Por falar em dica, vale ler na íntegra O Recife da década de 1930, Roberto Burle Marx e a gênese dos jardins públicos modernos, de Alda de Azevedo Ferreira, Fernando Pedro de Carvalho Ono e Joelmir Marques da Silva, fonte de pesquisa para este texto.