Em Foco 0506

O Recife amanheceu ontem mais uma vez em ritmo lento no trânsito. Obras nas ruas e protestos na cidade e nas rodovias de acesso só fizeram piorar uma situação que já é rotina. E então uma empresa internacional de tráfego por GPS divulga levantamento com seus usuários apresentando a capital pernambucana como a campeã brasileira em densidade de congestionamento. A manchete do Diario já apontava para esta direção. A página de Em Foco, concebida para destacar outros aspectos da notícia mais importante do dia, deveria também abordar os engarrafamentos.

Qual seria o novo olhar sobre o assunto? Além de apresentar o fluxo crescente da entrada de carros novos nas ruas – por dia, são 48 – seria importante mostrar como as vias se tornaram estacionamentos a céu aberto. Uma rápida pesquisa na internet mostrou o caminho. Em 2012, o jornal Folha de S. Paulo preparou um infográfico apresentando a relação entre área total da ruas de São Paulo e a área ocupada pelos veículos em movimento. No caso da capital paulista, se todos os motoristas resolvessem sair de casa ao mesmo tempo seria preciso ter o triplo de espaço existente para garantir o mínimo de mobilidade.

O problema é que os números do Recife não eram tão fáceis de obter. Foram necessários telefonemas, consultas, novas pesquisas na internet para chegar à informação de que as ruas locais têm larguras que variam de 7 a 15 metros. Para o quadro, o número base foi 9.

Mais afeito a números, o repórter Ed Wanderley assumiu os cálculos e criou toda a tabela com os números do trânsito e suas relações com os motoristas, numa linguagem compreensível a todos, pedestres, ciclistas, passageiros e motoristas. Um trabalho tão importante quanto o texto em si.

A conclusão é que, no atual ritmo, o Recife deverá também se juntar a São Paulo na questão de espaço indisponível para os moradores. Por questão de amostragem, não foi levado em conta que a frota que circula pelo Recife é bem maior, por causa dos veículos metropolitanos. A situação seria bem pior. As informações foram repassadas à editoria de Arte, onde o editor Christiano Mascaro concebeu o infográfico e Silvino fez as ilustrações.

No texto, que ficou reduzido por conta da parte gráfica, encontrei uma forma de citar o pernambucano Osman Lins, que já previa em 1969 esse fanatismo/dependência que temos hoje pelos monstrengos de metal e borracha.

Assim, um assunto que foi definido pela manhã só teve a página concluída por volta das 21h. Pelo menos não engarrafou o fechamento do jornal.

 

Aviso aos 48 novos motoristas do dia

Paulo Goethe

Sejam bem-vindos ao trânsito do Recife, que duplicou a frota em uma década e tem carros suficientes para deixar 90% das ruas sem espaço

O Recife parou. Ou pelo menos ficou ontem mais uma vez em marcha lenta. Protestos, obras inacabáveis, acidentes, semáforos quebrados. Sair de casa, ligar o motor, não ir a lugar algum. Pagar, além do IPVA, todos os pecados. Recifense, profissão motorista. E sem esperança. Porque pior será. E não foi por falta de aviso.
A frota atual do Recife é de 645.045 veículos, número que é quase o dobro de uma década atrás. Em 2014, até abril, começaram a circular pelas ruas da capital 5.766 carros novos. Ou seja, 1.441 por mês. Ou seja, 48 por dia.
Em 1969, vivendo em São Paulo, o escritor pernambucano Osman Lins escreveu o Auto do Salão do Automóvel, pequena peça em que mostra o seu olhar peculiar para a desumanização do trânsito. Os Gordinis, Volkswagens, Corcéis, Galaxies, Aero-Willys, Cadillacs, Simcas, Chryslers, Opalas da sua época foram substituídos por modelos mais modernos, alguns importados, com capacidade para rodar cada vez mais… devagar por causa dos engarrafamentos.
Na falta de investimento no transporte público, passageiro dá lugar a motorista. Isolado dentro do seu carro, proprietário de 60 metros quadrados na rua, um verdadeiro apartamento itinerante de solteiro, onde se pode fazer de tudo.
Se todos os felizes proprietários de carros resolvessem circular ao mesmo tempo, somente 11% das ruas teriam alguma condição de circulação. O restante seria um grande engarrafamento ao ar livre. Um em cada cinco metros do Recife – isso incluindo áreas verdes e afins – teria um monstro de metal a fazer sombra.
“Imagino, às vezes, que esses veículos são carros mortuários, silenciosos, conduzidos por mortos. Quanto a mim, nessas horas, o que sou? Um ponto. Um sinal. Todos que transitam a meu lado e avançam, sempre a olhar para frente, ignoram-me. Quanto maior o número de carros, mais oco e invísivel eu sou”. Pegando carona em Osman Lins, é hora da cidade se levantar e andar. Para o bem de pedestres, ciclistas, passageiros e… motoristas.