Em Foco 3107

Na foto, o sorriso da missão cumprida. A primeira bomba atômica detonada em seres humanos. No caso, Hiroshima, no Japão, 250 mil habitantes, com instalações militares camufladas em bairros civis. Uma ação determinante para o fim da II Guerra Mundial. O sacrifício de inocentes do outro lado para que outros compatriotas não morressem. Quase setenta anos depois, os bombardeios continuam. O alvo mudou. Mas a frase dita pelo último tripulante a morrer do voo do Enola Gay continua macabramente atual.

A moral que vem da guerra

Último tripulante a morrer do voo que lançou a bomba atômica em Hiroshima, Theodore Van Kirk deixa lição nada animadora

Paulo Goethe

Aos 24 anos de idade, de uma altura de aproximadamente 9,5 mil metros, Theodore Van Kirk foi um espectador a salvo do maior espetáculo da morte sobre a Terra. Da escotilha do B-29, o Holandês, como era chamado pelos amigos antes e depois da farda que usou na II Guerra Mundial, viu um cogumelo engolir uma cidade. Às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, Hiroshima, com 250 mil habitantes, entrava para a história como o primeiro alvo de uma bomba atômica. Navegador do voo comandado pelo coronel Paul W. Tibbets Jr, o major Van Kirk disse que, naquele momento, experimentou uma “sensação de alívio”. A guerra iria acabar, como prometeram a ele quando o convocaram para aquela missão mais que secreta.
O Holandês era o último dos vivos entre os 13 tripulantes da superfortaleza voadora batizada de Enola Gay – o nome da mãe do capitão Tibbets – que soltou a bomba apelidada de Little Boy sobre uma população inteira. Morreu na segunda-feira, aos 93 anos, de causas naturais. À família, pouco revelou das 580 missões aéreas que participou na Europa e na África do Norte. Deu baixa em 1946. A guerra era passado.
A explosão da Little Boy  gerou uma onda de calor que atingiu um raio de quatro quilômetros a partir do seu epicentro. Morreram de imediato 78 mil japoneses. Nagasaki, três dias depois, também conheceu o horror atômico. No dia 2 de setembro de 1945, o Japão se renderia.
Seis horas e meia depois da explosão em Hiroshima, já de volta à base nas Ilhas Marianas, no Pacífico, os tripulantes do Enola Gay passaram a ser tratados como heróis. As novas bombas evitariam uma invasão por terra ao Japão, que seria longa e sangrenta. De quebra, mostrariam a Stalin que os Estados Unidos venceram a corrida da produção de um artefato nuclear.
Com o passar dos anos e a revelação dos horrores da radiação e da morte de milhares de civis inocentes, o heroísmo já não era tão unanimidade assim. “É difícil falar sobre moralidade e guerra na mesma frase”, disse Van Kirk em entrevista à revista Time, em 2005.
Quase setenta anos depois, somos espectadores – a salvo em nossas casas – dos bombardeios em Gaza. Militares israelenses de um lado, radicais do Hamas do outro, a frase de Van Kirk continua mais atual do que nunca. Os civis, os inocentes de todas as idades e gêneros, são as vítimas dos ataques “cirúrgicos” de aviões ultrassofisticados ou dos foguetes atirados a esmo. Ainda à revista Time, Van Kirk definiu a sua visão de soldado:  “eu acredito que, quando se está numa guerra, uma nação deve ter a coragem de fazer o que for possível para vencer com a mínima perda de vidas”. O outro lado que chore pelos órfãos e pelas viúvas.
Em 1945, o Diario noticiou no dia seguinte ao lançamento da bomba em Hiroshima que “era impossível determinar o dano exato produzido”. Hoje, sabemos de imediato quantos morrem no Oriente Médio em uma guerra onde quem vence também perde moralmente. Pensem nas crianças de Hiroshima, pensem nas crianças da Palestina.