Em Foco 0209

Após o nascimento, Vitória só viveu nove anos. Três balas na cabeça acabaram com suas esperanças, mesmo sonhando em um ambiente onde a violência advinda do tráfico de drogas dava as ordens. Um horror que aconteceu no Ibura de Baixo, mas que pode se repetir em outras localidades do Recife e de Pernambuco. É essa banalidade do mal que Silvia Bessa repudia no seu texto para o Em Foco do Diario de Pernambuco desta terça-feira.

Horror dos horrores

Execução da menina Vitória Nascimento não pode ser tida como crime aceitável porque não devemos nos apequenar diante da violência  urbana

Silvia Bessa

O horror dos horrores é supor que Vitória Batista Nascimento dos Santos, 9 anos, foi executada com três tiros na cabeça porque gritava o medo perante aqueles que caçavam seu irmão de apenas 12 anos. Um irmão quase-criança e quase-adolescente, supostamente procurado por traficantes e, pelo que conta a família, devedor de R$ 250. Doze anos tem ele. Até há uma segunda hipótese aventada pela polícia ao iniciar a investigação sobre o crime: Vitória pode ainda ter sido morta porque um traficante queria comprar a casa onde morava a menina com mãe e irmãos. Seja como for,  acabou assassinada, o garoto foi (é?) buscado por traficantes, uma irmã pequenina de seis anos tirou às pressas outros três irmãos menores da linha de fogo, a mãe Ana Cristina do Nascimento foi baleada e está hospitalizada, e parentes afirmam que ela e o filho são viciados em crack. Este é o Recife do absurdo, fração da capital do estado de Pernambuco no último dia de agosto de 2014. É o fragmento da violência que nem sempre vemos ou temos notícia.
Não é aceitável. É o horror dos horrores porque, se se começa a achar desajuste dessa proporção algo comum; se a gente banalizar esse mundo mesmo que seja como espectadores, a gente vai se apequenar cada dia mais. Vitória, que até domingo residia no Ibura de Baixo (Zona Sul do Recife), foi enterrada nessa segunda-feira, mas não há ponto final no contexto que envolve ela, o ambiente das drogas e da família. Ficam as perguntas: e os que restaram? E o irmão de 12 anos? É de se pensar sobre a história por trás da história. Essa de um garoto de 12 anos, que ao tudo indica não só usa drogas como deve dinheiro a quem vende drogas, que é visto pela comunidade como um dos supostos causadores indiretos da tragédia…
Busquei ouvir uma das maiores especialistas em medicina da adolescência em Pernambuco, a hebiatra Betinha Fernandes. Queria conversar sobre violência e a repercussão dela sobre a vida desses meninos tão jovens, de 10, 12 anos. Disse-me ela: “a criança expressa o que está acontecendo na família. Essa criança é vista como o problema, mas ela é a representação do que está acontecendo no núcleo familiar”.
A violência que envolve e vitimiza crianças e adolescentes numa e de uma família começa – em vários casos – por meio do uso de substâncias químicas pelos adultos, álcool e crack, e vai ganhando corpo quando, enfim, afeta os mais novos. “chamamos de disfunção familiar essa violência que muitas vezes atinge o comportamento do paciente. Estou no ambulatório de pediatria do comportamento do Hospital das Clínicas há quase quinze anos e minha experiência mostra que a violência tem trazido inúmeros prejuízo para crianças e adolescentes”, disse Betinha, que além de clinicar, ensina a disciplina de violência contra criança e adolescente a alunos de medicina da Universidade Federal de Pernambuco e acaba de assumir a coordenação de saúde integral da adolescência da Uninassau.
“É uma coisa assombrosa o que a violência faz com uma criança. Faz a criança calar, ter rendimento escolar baixo, faz adoecer. Hoje em dia temos observado casos de depressão precoces. Acho assustador ver meninos e meninas de 7 ou 8 anos verbalizarem que sentem vontade de morrer. Assustador”, definiu a médica, uma veterana que trabalha  com adolescentes desde 1980.
Conversando com Betinha Fernandes na tarde desta segunda, lamentamos juntas a morte de Vitória e a pobreza, que “em si não é causa única da violência, mas se acrescenta a fatores múltiplos”. Por fim, ela sintetizou como ninguém em uma frase um sentimento que guiava meus pensamentos: “Na hora que eu parar de me espantar com casos como esse, vou virar um robô”.
Eu quero continuar sendo gente; e achando a execução de uma menina de 9 anos um horror.