Em Foco 1909

Hoje invadido apenas por turistas em trajes de banho, o arquipélago de Fernando de Noronha sempre foi alvo de cobiça de militares estrangeiros por sua localização estratégica. No período da Guerra Fria, os norte-americanos instalaram lá uma base para monitorar a movimentação dos soviéticos na Cuba de Fidel. Por pouco não nos envolvemos diretamente numa hecatombe nuclear. Tema do Em Foco do Diario desta sexta-feira.

A Guerra Fria na ilha

Fernando de Noronha quase foi o detonador de uma nova guerra mundial na época em que norte-americanos usaram a ilha para se contrapor a Cuba

Paulo Goethe

Com 17 quilômetros de extensão e habitada por 2,6 mil almas, sem contar os turistas que se aproveitam diariamente das suas praias, Fernando de Noronha, como toda ilha, tem seus segredos. O paraíso de hoje vendido pelas agências de viagem na verdade já foi o inferno na terra para indesejados da Colônia, do Império e da República, entre eles ciganos (em 1739), farroupilhas (em 1844) e até capoeiristas (em 1890), sem contar os presos políticos que passaram a ocupar a partir de 1938 o presídio erguido especialmente para eles, cortesia de Getulio Vargas.
Palco da primeira tragédia nacional, um naufrágio em 10 de agosto de 1503,  no dia em que as 21 ilhas, ilhotas e formações rochosas do arquipélago foram descobertas pelo navegador Américo Vespúcio, Fernando de Noronha – batizado com o nome do fidalgo português financiador da expedição comandada pelo italiano – também viveu dias de ocupação por militares de outros países. Alemães (em 1534), franceses (em 1556, 1558 e 1612), ingleses (em 1577), holandeses (entre 1629 e 1654) e novamente franceses (entre 1736 e 1737) tentaram dominar um dos pontos mais estratégicos do Atlântico Sul, atalho para a Europa e a África.
Mas foram os norte-americanos, primeiro em 1942 e depois no período de 1956 a 1965, que deixaram as maiores marcas na ilha, a ponto de Noronha quase ter se tornado o detonador de uma terceira guerra mundial. Terceira e última, porque  Estados Unidos e União Soviética iriam gastar todo o seu arsenal atômico antes de uma possível trégua, se isso fosse possível.
Sairiam da ilha – que voltou ao domínio de Pernambuco em 1988 – os mísseis  que iriam atingir Cuba, base soviética no Caribe, no tempo do famoso embate entre Kennedy, Castro e Kruschev.   A revelação está no livro Fernando de Noronha e os ventos da Guerra Fria (Editora Universitária), da historiadora noronhense Grazielle Rodrigues, fruto de uma pesquisa de dez anos nos arquivos do Dops-PE, Arquivo Nacional e Biblioteca de Washington.
Pressões diplomáticas e espionagens são o pano de fundo de uma relação nem sempre tão amistosa entre Brasil e Estados Unidos envolvendo uma base militar em Noronha. Os russos acompanhavam de perto as manobras na ilha. Moradores relataram ter avistado os submarinos dos comunistas rondando as praias.
Nas suas 198 páginas, resultado do trabalho de dissertação de mestrado da autora na Universidade Federal de Pernambuco, o livro mostra como os noronhenses conviveram neste período de Guerra Fria com tecnologia de ponta (ar-condicionado, máquinas de lavar e de refrigerantes) e com o medo de serem alvos de um conflito que não era deles. Era época de fartura, de trabalho três vezes melhor remunerado na base dos ianques – composta por 11 barracões-iglus – e também de diversão no cinema em frente ao Clube do Pico.
No dia 20 de janeiro de 1962, no Recife, era assinado o término do ajuste de cessão de uso de Noronha pelos militares norte-americanos. O termo arquipélago teleguiado perdia seu uso. A ilha britânica de Ascenção, em posição geográfica mais linear ao Cabo Canaveral, na Flórida, tornou-se a nova base da telemetria dos Estados Unidos no Atlântico. Os barracões-iglus foram desarmados e os noronhenses, décadas depois, passaram a receber novos invasores estrangeiros, inclusive da terra do Tio Sam, mas desta vez em pacíficos trajes de banho.