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Abelardo da Hora viu muita coisa na vida de 90 anos. E fez muita coisa também. Colocou a mão na massa, suou a camisa, foi para a rua expor o que pensava da melhor forma: através da arte. O seu engajamento era revelar, em formas concretas, o que já se via mas não que queria perceber. A miséria, a fome, a exploração do próximo. Aliciador do bem de muitos outros artistas, colocou a escultura no seu devido lugar: entre o povo, na praça e nos prédios.  A história deste grande homem franzino é contada por Luce Pereira no Em Foco do Diario desta quarta-feira.

O homem com arte nas veias

Escultura para homenagear líder político Gregório Bezerra ficou inacabada. Abelardo da Hora se foi, aos 90 anos, deixando legado inestimável

Luce Pereira

Em algum dia de 2015, é provável que cerca de 130 peças do escultor e ceramista pernambucano Abelardo da Hora desembarquem em um país da Europa. Mas sem a companhia de quem as criou. O artista não conseguiu viver o suficiente para assistir ao sonho se realizar e ontem despediu-se, vencido por graves problemas pulmonares contra os quais vinha lutando. Sim, aos 90, completados no último dia de julho, ele ainda tinha planos de levar sua arte mundo afora, talvez para, enfim, dizer “missão cumprida”. E ir-se alegre como viveu.
No entanto, o homem franzino que arrancava da pedra de cimento mulheres extremamente sensuais, nem precisaria ir mais longe. O legado – artístico e humano -–já estava de tão bom tamanho que ele bem poderia, há tempos, se dar ao luxo de apenas fazer companhia às suas “criaturas”, no ateliê da Rua do Sossego, e através delas contemplar a estrada percorrida – uma trajetória para poucos. Abelardo não foi apenas um expoente das artes plásticas, no estado, como o homem preso “mais de 70 vezes” durante a ditadura, numa delas por pronunciar a palavra paz. Nada tão revelador da cumplicidade com o social.
Inquieto e buliçoso, enquanto escorregava entre os dedos de chumbo do regime militar, trazia à luz figuras nas quais deixava transparecer toda a preocupação com a classe menos favorecida, o povo e suas dores. Também neste sentido, se mostrava muito “atrevido”. Mas é sempre graças à ousadia santa que as contribuições para mudar o mundo acontecem – e com Abelardo não seria diferente. Gritava sua indignação através de suas criações, também por acreditar na arte como força capaz de transformar o social.
Esta crença vinha de longe. Tanto assim que, em 1948, criou a Sociedade de Arte Moderna do Recife, para impulsionar amplo movimento cultural com abrangência nas áreas de educação, cultura, artes plásticas, teatro e música. Tinha 24 anos. E aos 28, trazia para o Ateliê Coletivo – embrião do Movimento de Cultura Popular – um time de estrelas da grandeza de Gilvan Samico, José Cláudio, Aloísio Magalhães, Francisco Brennand.
Apesar do endereço fixo, onde o artista seguia criando como se o tempo não tivesse voado, não era apenas no espaço do ateliê que sua alma se refletia. Ela está ainda mais livre e escancarada nas ruas que mais dizem do Recife, como a da Aurora, onde se observa o grito em favor da cultura popular, através do seu Monumento ao frevo. Mas ele também esperneou contra a miséria, em A fome e o brado, e contra as desigualdades sociais, com o Memorial aos retirantes (Parque Dona Lindu). Foi da dor e do sentimento do povo que brotou a parte mais vigorosa e sensível de sua arte.
Em entrevista a um site local, mês passado, Abelardo definiu a morte como “uma traição que se faz contra a vida”. No caso dele, a “traição” bem que poderia ser entendida como falta de tempo para concluir aquela que seria sua última obra, em homenagem ao líder político Gregório Bezerra. Não conseguiu. A honra ficou com a gigantesca peça de cinco metros de altura, em bronze, O artilheiro, que inaugurou no dia do aniversário de 90 anos, em 31 de julho, na frente do portão principal da Arena Pernambuco. Foi seu derradeiro gol de ouro.