Há 50 anos, o cronista Antônio Maria, pernambucano que ganhou alma carioca, morreu vítima de infarto na calçada de um bar em Copacabana. Era o fim de uma vida que foi além dos 43 anos registrados na sua certidão de nascimento. O Menino Grande deixou escritas muitas crônicas, que continuaram sendo publicadas no Diario de Pernambuco até a primeira quinzena de novembro de 1964. Tema do Em Foco do Diario desta quarta-feira, por Paulo Goethe.
Um amor de Maria
Há 50 anos morria o pernambucano que deixou registrada em crônicas a vida que intensamente consumiu até a calçada de um bar
Paulo Goethe
Caro Antônio Maria Araújo de Morais: cinquenta anos separam estas linhas das últimas que você enviou para publicação neste mesmo Diario de Pernambuco, jornal de suas primeiras crônicas antes de se tornar uma referência da boemia carioca a partir de 1947. Longe de mim querer me comparar a você, craque das palavras que produziu o suficiente para ser publicado bem depois da sua morte. Sim, no dia 15 de outubro de 1964, ao sair de uma reunião com um grupo de amigos no restaurante Le Rond Point, em sua Copacabana querida, sentiu-se mal e morreu na calçada. O coração lhe traiu, aos 43 anos de idade, mas você sempre soube perdoar. Afinal, intitulava-se um “cardisplicente”.
Você bem sabe que a imprensa adora uma efeméride e meio século é uma data tão redonda quanto o seu corpanzil suarento que não lhe impediu de ser um conquistador de primeira. Por isso você voltou. Nem que seja por poucos dias. Nestas cinco décadas, o Brasil mudou muito e você acabou meio colocado de lado. Poesia não estava na moda. Muito menos escrever em primeira pessoa. E jornal é cruel, porque tudo registra para ser esquecido.
Foi consultando o Diario de outubro de 1964 que percebi o quanto você era uma máquina de escrever. Mesmo depois do seu passamento, o jornal ainda continuou publicando a sua coluna, batizada de O jornal de Antônio Maria, até o fim do mês. Muita coisa você tinha para dizer, mesmo que fosse para se lamentar daquele jeito só seu. Parecia até que estava desistindo de viver. Porque no Diario do dia 16, na mesma edição em que os amigos pernambucanos lamentavam a sua triste partida, lá vinha no seu Jornal a quase premonição:
A Humanidade é incontentável. Perdi, digamos, 100 quilos e todos me disseram, na rua:
– Cuidado, você emagreceu demais.
Engordei cinco quilos e todos me disseram, com igual preocupação pela minha saúde:
– Cuidado, você está voltando a engordar.
Só há uma solução: morrer e, do outro lado, ouvir a voz suspirosa da Humanidade, afinal contentada:
– Foi bom assim. Ao menos, descansou.
Mais adiante, compara-se a Kafka com o humor que lhe é característico (de Antônio Maria, não do escritor tcheco):
Há em mim todas as mazelas de Kafka e nenhuma de suas virtudes. (…) Somos afins nos conflitos psicológicos que destroem nossas existências. Sustentamos ambos uma luta (íntima), perdida para o mundo exterior.
Nesta mesma coluna, a última nota ainda revelava que, em caso de morte (“todos morremos”, ressaltou) seu diário estava no bolso de uma japona no guarda-roupa.
Meu Bom Maria (era assim que Vinicius de Moraes lhe tratava), você foi um em muitos. Speaker esportivo (transmitiu a derrota do Brasil para o Uruguai em pleno Maracanã, na Copa de 1950), compositor, repórter, cronista, diretor e produtor de programas de rádio e TV, era um cidadão carioca com o coração (o mesmo que lhe abandonou, como as muitas mulheres de sua curta vida) recifense. A capital de Pernambuco, inspiração para os seus Frevos nº 1 e nº 2, era tema recorrente de suas crônicas, como esta publicada no dia 14 de fevereiro de 1955:
Recife (…). Eras a nossa esperança de refúgio. Agora, quando eu me cansar das “champanhotas”, para onde eu vou? Onde poderei encontrar-te com a pureza antiga?
O Recife perdeu a inocência, mas não a esperança. Ainda sabemos celebrar um dos nossos. Por isso que é preciso ressaltar, além da tinta e do papel, a sua importância nestes tempos em que poucos leem, mas todos criticam. Um obrigado por ter feito de suas memórias o jornal de cada dia. O nosso. O de Antônio Maria.