0411 Em Foco

No dia 4 de novembro de 1977, uma tradição de 81 anos da Academia Brasileira de Letras foi quebrada. Nesta data, a cearense Rachel de Queiroz, autora de O quinze e outras obras que deram um significado ao Nordeste, tomava posse como a primeira imortal. O primeiro vestido em meio aos fardões. Importância destacada no Em Foco do Diario desta terça-feira, por Paulo Goethe.

A primeira imortal

Autora de O quinze, a cearense Rachel de Queiroz foi o primeiro vestido em meio aos fardões da Academia Brasileira de Letras

Havia um jurista no meio do caminho. Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, um candidato forte, perdeu por 23 a votos a 15, sem contar um em branco. No dia 4 de novembro de 1977, a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras, fundada por Raimundo Correia, tendo como patrono Bernardo Guimarães e ocupada sucessivamente pelo médico Oswaldo Cruz, o poeta Aluísio de Castro e o jurista, crítico e jornalista Cândido Mota Filho, teria um vestido no lugar de um fardão. Aos quase 67 anos de idade, a cearense Rachel de Queiroz tornava-se a primeira mulher imortal no país. Às 22h10 daquele dia, quando assinou o livro de posse com a caneta de ouro, entregue pelo presidente Austregésilo de Athayde, a imortalidade acadêmica deixava de ser uma honra masculina. Mais um feito e tanto para uma autora que deixou o mundo literário em polvorosa quando publicou, em 1930, aos 20 anos de idade, um romance sobre a seca.
O quinze, primeira tiragem de mil exemplares, financiada pelos pais, não encantou os críticos cearenses. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, no entanto, chamou a atenção de Augusto Frederico Schmidt. Mário de Andrade, Graça Aranha e Murilo Mendes. Eram tempos de engajamento político e de se pensar o Brasil por suas singularidades. Um Nordeste com identidade própria começava a emergir. Rachel não fugiu à luta. Filiou-se ao Partido Comunista. Fichada como “agitadora vermelha” pela polícia política de Pernambuco, teve seus livros queimados em 1937 em Salvador, juntamente com os de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, sob a acusação de subversivos. Era o Estado Novo, com Getulio Vargas botando as garras de fora.
O desencanto com os comunistas começa primeiro com a desaprovação do PC ao seu romance João Miguel, porque na história um operário matava o outro. Aproxima-se dos trostkistas, mas abandona a militância depois da morte do rival de Stalin,  em agosto de 1940, no México. Reduz a colaboração na imprensa engajada para se dedicar à produção literária.
Se na vida política Rachel de Queiroz mudou radicalmente de direção – em 1964, apoiou os militares a partir do conterrâneo e amigo general Castelo Branco e até produziu obras didáticas de moral e cívica na ditadura – ela permaneceu construindo histórias onde o Nordeste rústico era a representação viva das lutas de classes. Suas personagens femininas eram fortes e contraditórias dentro de um universo predominantemente masculino.
Dos livros de Rachel, onde a penúria do Sertão é quase um personagem, chamo a atenção para uma das últimas obras, voltada para a fartura nordestina. Seu delicioso Não Me Deixes – suas histórias e sua cozinha, escrito com a irmã, Maria Luiza de Queiroz Salek, e lançado em 2000, compartilha as receitas servidas na fazenda de mesmo nome, no município cearense de Quixadá, intermediadas por contos da autora ou por causos do patrimônio oral da família. No fim da vida, uma das responsáveis por colocar o Nordeste no mapa deixa um testamento, um memorial, sobre nossa identidade a partir da culinária.
Num dia 4 de novembro como o de hoje e o da sua posse na ABL, mas em 2003, a sete dias do seu aniversário, ela faleceu dormindo em sua rede, no Rio de Janeiro. Aos quase 93 anos, a primeira imortal saía de cena, deixando a mesa posta para as muitas autoras que vieram depois dela.