Em Foco 2311

É preciso reagir com força antes que os verbos matar, machucar e destratar devorem de vez uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa. A complacência do Estado brasileiro ajuda a manter este clima de intolerância contras as minorias, rejeitando a diversidade como uma riqueza social. Tema do Em Foco do Diario de domingo, por Luce Pereira

Que falta faz a gentileza

Alto nível de intolerância exige do Estado brasileiro medidas rigorosas no combate a manifestações de  preconceito, que resultam em tensão e  violência

Luce Pereira

Em tempos de tão poucas certezas e tanta intolerância está claro que, se ainda vivessse, o Profeta Gentileza (nascido José Datrino) teria muito mais trabalho do que teve até 1996, quando se foi. Desde então o Brasil não conheceu outra figura tão empenhada em difundir a amabilidade como condição de sobrevivência e, pelo visto, nem chegou a aprender a mensagem do homem que perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro ajudando a tecer a cultura da paz. Muito pelo contrário. Os casos de agressão e perseguição gratuitas às chamadas minorias andam crescendo assustadoramente e fazendo com que as grandes cidades sejam chamadas de selva não no sentido figurado, mas no real.
A semana em que se celebrou o Dia Nacional da Consciência Negra encerrou-se com um episódio no qual esta intolerância esteve, mais uma vez, evidenciada. Em lugar de o alvo de degola ser o preconceito (neste caso, religioso), quem ficou sem a cabeça foi a estátua de Iansã colocada por estudantes na Faculdade de Direito do Recife. Poucos comportamentos se mostram menos gentis do que desrespeitar a fé professada por alguém.
Neste campo, a realidade espanta e não é de agora. Em 2010 e 2011, por exemplo, a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação, da Plataforma DHESCA, identificou, nas escolas públicas do país, terreno dos mais hostis aos seguidores de religiões de matriz afro-brasileira. Durantes as investigações, vieram à tona situações graves de violação dos direitos humanos, que também chegaram ao Conselho Nacional do Ministério Público e acabaram motivando, em 2013, o surgimento da campanha Conte até 10 nas escolas (antes de reagir), com a proposta de estimular a cultura da paz entre os jovens. Segundo estudiosos, no entanto, os casos de agressões aos fiéis continuam subnotificados.
Mas é preciso lembrar que os terríveis olhos da intolerância miram com ódio, também, negros (independentemente da religião) e homossexuais, sem falar nos nordestinos. Basta dizer que crimes de racismo e homofobia já mataram a capital do país, Brasília, de uma vergonha difícil de ser esquecida. Lá, em 2011, somaram 45 casos e em 2012 já eram 239. Frequentemente, as redes sociais refletem a animosidade de pessoas de outras regiões contra habitantes do Nordeste, manifestada com palavras extremamente ofensivas como se viu a partir do resultado das eleições presidenciais deste ano.
Na verdade, quem precisa reagir com força a tudo isso é o Estado brasileiro, antes que os verbos matar, machucar e destratar devorem de vez uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa, tão essencial para diferenciar o comportamento dos homens do comportamento dos animais. Sem ela, esta fronteira entre uma condição e outra se dilui, fazendo com que o alto nível de intolerância resulte em violência instantânea. Há alguns dias, em um shopping da cidade, dois motoristas de desentenderam na disputa por uma vaga de estacionamento e, irritado, o que havia posto primeiro o veículo no local acabou dando marcha a ré disposto não apenas a atingir o carro como o dono dele. Foi por pouco. Nenhum ferido, mas os dois automóveis danificados.
Certamente, pessoas tomadas pela fúria – porque estão com nervos à flor da pele ou porque não respeitam o direito do outro – precisam de menos complacência do Estado na tarefa de ensiná-las a viver em sociedade. Poderiam, depois de devidamente punidas, começar pela lição número um do Profeta – gentileza gera gentileza – e terminar o aprendizado com a de Platão: “A vida inteira precisamos de graça e gentileza”. Uma verdade universal, nascida há mais de 340 anos a.C.