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Façamos uma pequena viagem no tempo e voltemos a 24 de dezembro de 1855, uma noite de Natal como esta. As peculiaridades das festas de ano eram relatadas nas páginas do Diario de Pernambuco, pelas mãos de um escritor pernambucano. O resgate desta história você lê no Em Foco desta quarta-feira, por Paulo Goethe.

 

Natal de folhetim

Há 159 anos, um escritor pernambucano publicava no Diario um relato escrevendo peculiaridades das nossas festas de ano. Mergulhe nesta história

Paulo Goethe

Houve um tempo em que o Natal no Recife era comemorado à base do lombo de porco e da galinha de cabidela, as pessoas vestiam seus melhores trajes para assistir à Missa do Galo e, depois dela, quem tinha posses para se mandava para o “mato”, símbolo de distinção social nesta época do ano. Os que ficavam na capital pernambucana poderiam ver apresentações dos presépios, se bem que este tipo de celebração já começava a ganhar fama de imoralidade. Estamos no dia 24 de dezembro de 1855 e a descrição acima faz parte do primeiro “folhetim” publicado no Diario de Pernambuco escrito por um filho da terra. Quem assinava o texto de A carteira era Abdolah-el-Kratif, mas o exótico nome era apenas um pseudônimo usado por Antonio Pedro de Figueiredo, responsável também pelos textos do Retrospecto semanal do jornal, um comentário sobre os episódios ocorridos nos sete dias anteriores.

De acordo com Arnoldo Jambo, autor do livro Diario de Pernambuco – História e jornal de quinze décadas, lançado em 1975, Antonio Pedro de Figueiredo “inaugurou, com segurança, a crítica de literatura no Recife”. Para Jambo, o folhetim A carteira, é o ponto alto na integração do Diario no desenvolvimento literário do Nordeste. Os escritores locais tinham espaço garantido. E muito espaço, diga-se de passagem. Tanto que este Em Foco vai ressaltar apenas alguns trechos da caudalosa escrita de Abdolah-el-Kratif. Quem quiser ler o texto original tal como saiu em 1855, apenas com a ortografia atualizada, pode visitar o blog Direto da Redação.

Cada texto publicado em jornal torna-se automaticamente uma contribuição histórica. No caso de A carteira, vale lembrar que uma avaliação dos nossos costumes tomou lugar, numa data tão significativa, de histórias de autores geralmente franceses sobre temas tão diversos da nossa realidade. Como um erudito da época, Figueiredo louva os europeus e critica o nosso Bumba-meu-boi, que classifica como “semibárbaro” mas o fato de citar esta manifestação profana do Dia de Reis (6 de janeiro) já demonstra que o pernambucano sabia aproveitar bem as festas de ano, preparando-se logo em seguida para o carnaval. Alguma semelhança com os dias de hoje? Mas é bom parar de escrever e deixar que Abdolah assuma seu posto. Você, caro leitor, viaje no tempo e volte 159 anos atrás. O Diario de Pernambuco se orgulhava de exibir, no rodapé da capa daquele 24 de dezembro, uma produção tão sua. Com vocês, A carteira:

Entre nós quase que não encontramos uma lenda particular usada nesta festa cosmopolita, mas contudo a noite de Natal é toda consagrada a regojizos e prazeres. O pobre na sua humilde morada bendiz este dia aos sons melodiosos de singelos cânticos de louvor ao fundador da religião da igualdade e fraternidade. No meio das harmonias estrepitosas de alegria profana, traja as suas galas modestas, substitui o frugal alimento de todo o ano pela abundância e o regalo culinário tradicional que lhe permitem os seus recursos.

O clássico lombo de porco levanta-se soberbo no centro da acanhada mesa, que cobre alva a toalha de algodão da terra, e onde fumega o calor do forno, ao lado da cabidela de galinha, assombroso esforço do engenho dos nossos Vatéis. O vinho de além-mar, a viola patriótica, o lascivo baiano precedem e seguem a Missa do Galo e se perpetuam dias e noites, sem que se míngue jamais a sede, ou cansem os dedos que tangem o instrumento, e os membros que se agitam no voluptuoso dançar nacional.

Todos suspiram por este período de jovial algazarra, de contínuos folguedos, de curiosos e variados passatempos, e para eles se preparam com todo o fervor de um verdadeiro culto. O guarda-roupa se refaz e regurgita até de coisas supérfluas; o quintal do rico se povoa de aves domésticas, a despensa se abastece de londrinos e flamengos, de presuntos, de patos, de vinhos e licores. Estamos por algum tempo no país afortunado de Cocagne, onde corre leite e mel, e as montanhas de açúcar candil; os fiambres, assados, recheios, pastelões, empadas, pudins, bolinhos e doces se oferecem espontaneamente a quem os apetece, e isto tem lugar não só na cidade, como em todos os seus arrabaldes.

Entretanto, do alto das torres soa a hora fatídica da Missa do Galo. Uma multidão inumerável de todas as classes da sociedade obstrui as ruas em busca dos templos que ficam literalmente cheios, onde se observam ondas de beleza, de diamantes, de flores, de plumas, de fitas, de trajes esquisitos, que rolam ao som da música e do órgão. Ouvidas as três missas do costume, uns voltam para as suas casas para comer, beber e cantar a lapinha, outros percorrem as ruas até o romper d’alva, e outros se dirigem ao campo, ou para casas alugadas à custa de sacrifícios e economias enormes, ou de alguns amigos ou parentes.

O furor de sair para o mato nesta quadra, presentemente está mais arrefecido, mas já houve tempo que aquele que não podia alugar uma casa em alguns dos sítios próprios, escondia-se, como envergonhado da sua miséria, durante todos os dias santos da festa, e ninguém o via na rua. Era tal a mania que muita gente vendia o que possuía a fim de satisfazer este capricho da moda. Entretanto, parece que já vai chegando o momento do bom senso, e cada um se resigna às suas circunstâncias.

O Dia de Reis, dia em que a misteriosa estrela dos Magos indica aos pastores o lugar do nascimento do Redentor, posto que ofereça particularidades notáveis entre todos os povos europeus de origem romana, contudo, entre os pernambucanos, além do chamado Bumba-meu-boi, nada mais o caracteriza, mas há muitos anos este entretenimento semibárbaro se acha banido dos nossos costumes, e tinha lugar no dia 6 de janeiro. Era uma farsa grotesca, sem paralelo entre povo algum. Um sujeito envolvido em uma baeta, com uma caveira de boi em um pau, era o tal bumba. Havia um topador ou capinha, como nos circos de Sevilha, em que fala Lord Byron, um padre, um cirurgião, uma chamada camporinha e outras inteiramente fantásticas.
(Abdolah-el-Kratif)