Em Foco 1302

Com uma homenagem ao compositor de frevos Carlos Fernando, o Clube de Máscaras Galo da Madrugada sairá neste sábado com seis carros alegóricos, dois a mais que em 2014. Tudo é sempre grandioso nesta agremiação que começou em 1978, como uma brincadeira de amigos no bairro de São José. Tema do Em Foco do Diario desta sexta-feira, por Luce Pereira. A arte é de Jarbas.

Lá vem o rei de “esporas afiadas”

O sábado é de Zé Pereira, mas o dono dela atende por outro nome: Galo da Madrugada, que outra vez vai reinar por pelo menos dez horas

Luce Pereira  (texto)
Jarbas  (arte)

Sexta-feira, 13. Mas o rei (Momo) deu férias a lobisomens, lobos e outras assombrações: vai entregar as chaves do Recife a um “bicho” abusado, que cisca, impaciente, em São José, como noivo que “não vê a hora”. O Galo não cabe em si de vontade de voltar a ser a melhor notícia do dia de Zé Pereira, para não dizer a única. Não se fala noutra coisa. Não se quer outra coisa, desde que “o sol clareia a cidade com seus raios de cristal”, arrastando Deus e o mundo para o Centro. Minha senhora, meu senhor, desista de fazer esta conta de dígitos a perder de vista, porque o resultado dela é uma lenda, feito o próprio dono. Começou “pinto”, como é de lei, ciceroneado por 75 “almas penadas”, mas um ano depois, em 1979, já se preparava para colocar as asinhas de fora, cheio de vaidade que só vendo. Com apenas oito, fez seu voo real, passou a cantar mais alto do que o som das orquestras e então tiveram que chamar os trios elétricos. Talvez majestade quisesse que seu vozeirão fosse ouvido pelo mundo.
E foi. Até o Guinness Book escutou, lá na Inglaterra; interessou-se em saber quantas pessoas seguiam aquele rei por um dia, no desfile de 1995, e descobriu que na Terra não havia outro com maior cartaz. Nem mais vaidoso, claro. Na véspera, já sai todo faceiro para um passeio noturno, quando então começa a matar a saudade das ruas estreitas de São José – acha que um ano longe delas é uma eternidade. A depender unicamente do seu desejo, reinaria sem descanso o ano inteiro, para manter bem viva, em cada esquina, a chama do carnaval genuíno (brincado no asfalto, livre), que até janeiro de 1978 mostrava-se esmorecida, junto com a alegria de São José. E como poderiam se sentir pessoas que ali se viram devolvidas aos braços do frevo? Cativas, sem dúvida.
Assim, àqueles poucos foliões do começo foram se somando milhares e mais milhares (não, minha senhora, meu senhor, desistam de saber quantos, de fato, porque certas contas, de tão imprecisas, só servem mesmo para alimentar polêmica), até a devotada multidão que se vê hoje.
Mas é preciso dizer que os devotos do Galo, mesmo longe, sempre arranjam um jeito de se sentir perto inventando filhos para sua majestade. Tem galo em Goiânia (GO), Brasília (DF), Teresina (PI), Maceió (AL), Porto Alegre (RS) … E todos muito orgulhosos da poderosa genética, que produz gerações de brincantes apaixonados pela folia made in Pernambuco. Dela, nem os gringos escapam e não raro lá vêm eles entortando palavras na tentativa de engrossar o coro monumental que se ouve no sábado de Zé Pereira. E já é amanhã.
Se a meteorologia destoar do hino e o sol “com seus raios de cristal” abrir alas para a chuva, não há perigo de se ver ali gente desgostosa. Muito pelo contrário. Água que aplaque o calor medonho pode ser entendida como mimo dos deuses, dado que folião só enxerga a vida como ela deveria ser – um presente.
Ensopados de chuva, de suor ou de cerveja, o que todos querem, na verdade, é ser igualados pela alegria, e nisso reside o grande mérito de sua majestade: apagar fronteiras, marcos, tudo que, na vida real, separa. E o mundo das diferenças vai desaparecendo cada vez que o chão treme, mais ainda quando a emoção toca de perto, arranca uma lembrança ou um beijo. Nestas horas o “bicho” canta mais alto lá de cima, como se quisesse dividir a felicidade com Enéas. É lindo ver.
Momo também acha. Balança a pança, satisfeito com a performance do convidado, que é de briga, porém só usa as esporas afiadas para fazer charme. Quando ele as recolhe e vai dormir o sono de um ano, então já se ouve longe, bem longe, o fantasma da quarta de cinzas a agitar suas correntes. Mas quem se importa com essa indesejável senhora, se daqui a pouco é hora de rever a alegria?
Evoé, Galo!