Em Foco 2802

Pela defesa de se discutir a aceitação de cabelos e influências negras na escola e famílias hoje conta-se a história de amor de Milka Gomes Santos de Melo por Abgaeli Santos da Silva. Uma história que se reflete em um sem-número de garotas que sofrem com preconceito a cabelos cacheados. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do sábado, por Silvia Bessa. A foto é de Paulo Paiva.

A menina do cabelo ao vento

Silvia Bessa (texto)
Paulo Paiva  (foto)

O dia em que Abgaeli viu o mar pela primeira vez foi o dia em que ela deu de cara consigo mesma, que se entendeu com a textura crespa do seu cabelo e se descobriu bela. Sete anos tem Abgaeli. Nunca mais esquecerá que em fevereiro de 2015, esse mês do qual a gente se despede, aprendeu a imaginar além do horizonte, olhar para o espelho e gostar dos seus cachos. Até então, acreditava na feiura. No ouvido da menina, ainda dói os xingamentos de coleguinhas do distrito rural de Parque Vira dizendo (ou gritando): “Bruxa, bruxa”. Sofria ao passar pela rua da vizinhança e corredores do Grupo Escolar Ernani Celestino Sobral, localizado em um recanto afastado de Canhotinho, localizado no Agreste a três horas do Recife. Ir para a escola era um problema. Ela é ou foi a única a sofrer com os cabelos, a ponto de pensar duas vezes antes de colocar a farda do colégio?, indaga-se, como uma espécie de provocação às sorrateiras e danosas comparações e aproveitando o início de aulas.
Pela resposta óbvia se considerarmos que somos um país com fortes influências africanas, por cada menina e menino que se intimida com cachos e crespos, pelo bem que uma palavra amiga ou um gesto delicado pode fazer na formação de uma criança, pela defesa de se discutir a aceitação de cabelos e influências negras na escola e famílias hoje conta-se a história de amor de Milka Gomes Santos de Melo por Abgaeli Santos da Silva. Começou assim:
No último carnaval Milka foi a Canhotinho. Não conhecia a filha da prima dela. Dona de cabelos rebeldes, a garotinha era a mais velha da casa e chamava a atenção pelos seus olhinhos tristes. Abgaeli estava incomodada com sua aparência; acabara de fazer um alisamento capilar lá no distrito rural onde mora. O resultado havia sido desastroso. “Ela ficava com vergonha e não saía de casa por nada”, conta Milka, maquiadora que mora no Recife e tem paixão por moda. Virou meta de Milka tratar o cabelo de “Bi” e soltar os cachos do danificado cabelo dela. Primeiro, uma hidratação com os produtos que tinha à mão. Começou a fumaçar. “Fiquei pasma, com frio na barriga e medo. Lavei. Peguei Bi e trouxe para o Recife”, contou Milka, só aliviada pelo fato de o alisamento não ter atingido o couro cabeludo.
A vinda de Abgaeli para o Recife foi uma espécie de aventura em oito dias. Parte dela foi narrada na página pessoal de Milka na rede de relacionamento Facebook e acabou sendo acompanhada e incentivada por amigos. Ganhou até a hashtag #aceitaoblackbi. Abgaeli saiu de Canhotinho para a casa da prima maquiadora, em Jaboatão dos Guararapes, na quarta-feira de cinzas. A mãe, Dilma, recomendou que voltasse logo para fazer companhia às irmãs e retornar às aulas no Grupo Escolar.
Milka prometeu melhorar o cabelo da menina, mas sabia que a tarefa seria mais ampla do que parecia. Tinha em mente fazer com que ela assumisse os cachos e a si mesma. Traçou uma estratégia: além de frequentar os salões de beleza, andaria pelas ruas para mostrar que cabelos soltos e crespos estavam na moda. “Olha lá aquele rapaz, está vendo, Bi?”. Não satisfeita, chamava passantes com cabelo modelo black power para darem depoimentos. Abgaeli foi se convencendo que aqui, no Recife, lugar tido para ela como desenvolvido, o bonito era deixar o cabelo natural.
Laços e faixas novas no cabelo, de todas as cores, Abgaeli ficou confiante. Dava gosto vê-la posando de modelo no calçadão da Avenida Boa Viagem às vésperas de voltar ao seu interior e mostrar o cabelão cacheado para os colegas. “Para mim, é um sonho realizado”, disse Milka, feliz com a aceitação da menina. E, se um menino disser algo com você, o que você fará, Abgaeli? “Não vou dizer nada. Não vou nem ligar. Vou continuar desfilando”, respondeu-me.
O que Milka ensinou para a  menina – e queira Deus para vizinhos do distrito de Parque Vira – foi lição para a vida inteira.