Lampião, Maria Bonita e nove integrantes do seu bando morreram em uma emboscada na grota de Angicos, em Canindé do São Francisco (Sergipe), no dia 28 de julho de 1938. Saíram da vida de forma violenta – assim como viveram boa parte dela – mas não “descansaram” completamente. Suas cabeças, exibidas como forma de troféu pelo tenente João Bezerra em várias cidades nordestinas até Maceió, foram encaminhadas depois para o Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, para “estudos científicos”. No dia 12 de abril de 1959, o Diario de Pernambuco trouxe reportagem assinada por Severino Barbosa mostrando a luta dos familiares do casal mais famoso do cangaço para o enterro das peças mumificadas. Era o momento de encerrar de vez esta história. Somente uma década depois, no dia 6 de fevereiro de 1969, as cabeças foram sepultadas no cemitério da Quinta dos Lázaros, em Salvador. Leia abaixo o texto publicado em 1959.
Família de Lampião reclama a sua cabeça
Severino Barbosa
Após o combate de julho de 1938, em Angico, estado de Sergipe, o tenente João Bezerra, chefe da volante, tomou a iniciativa de mandar cortar a cabeça de Lampião, Maria Bonita e mais nove bandoleiros a título de comprovante para que não restassem dúvidas sobre a morte do famoso chefe do cangaço.
As cabeças foram remetidas para Salvador e entregues ao Instituto Nina Rodrigues, que se encarregou do embalsamamento.
O que se esperava é que, após o tétrico espetáculo da exposição a curiosos, o instituto devolveria aos respectivos parentes as cabeças dos cangaceiros para sepultamento. Tal não aconteceu. E, apesar dos protestos, há 21 anos as cabeças sem corpo vivem no Museu da Bahia, servindo, segundo dizem, a estudos científicos.
PROTESTO DO LEGISLATIVO PERNAMBUCANO
Ninguém pense que, de 1938 até hoje, houve silência por parte da família, ou do povo, em relação ao fato. Em 1953, após uma série de reportagens de O Cruzeiro, de ampla repercussão em todo o país, o deputado Miguel Mendonça, da Assembleia Legislativa de nosso estado, foi à tribuna e lançou veemente protesto, Entre outras palavras, disse aquele parlamentar:
“A manutenção das cabeças humanas insepultas e sua exibição ao público, sobre ser, em si mesmo um ato monstruoso e de inaudita selvageria e um grave ultraje à dignidade da pessoa humana”.
Com a solidariedade da Câmara Municipal do Recife e da imprensa de nossa capital, a Assembleia Legislativa encaminhou ao Ministério da Justiça um pedido, no sentido de que fossem sepultadas as cabeças de Lampião e seus comparsas.
LAMPIÃO VIRA MÚMIA DO EGITO
Consultado pelo dr. Régis Pacheco, naquela época chefe do executivo baiano, o professor Estácio de Lima, diretor do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, respondeu com extenso relatório, no qual procurou justificar a permanência das cabeças naquele museu.
A certa altura do referido relatório, diz o professor Estácio de Lima:
“Incompreensível seria, por todos os tírulos, se o rei Farouk, ou qualquer pontífice hereditário do Nilo, viesse a pedir o sepultamento dos seus parentes, as múmias do Egito”.
Agora perguntamos:
Qual o grau de parentesco entre o rei Farouk e as múmias do Egito?
Parentes de Lampião, estes sim, existem. Cerca de trezentos, desde irmãos, até familiares mais distantes espalhados pelos estados de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Sergipe e Bahia.
Com estas palavras, encerra o professor Estácio de Lima o seu relatório:
“O ilustre senhor governador do estado, que também é médico digníssimo, decerto não apoiaria esta ameaça à cultura de nossa terra, ameaça que não traz consigo as bases do direito e da justiça”.
CIÊNCIA OU DESRESPEITO AOS MORTOS
Para os diretores do Instituto Nina Rodrigues da Bahia, a cabeça de Lampião é uma peça anatômica. Para a família de Virgulino Ferreira, a cabeça que lá existe embebida em formol, no Museu de Salvador, e resto do corpo de um irmão, de um primo, um pai ou um avô.
Expedita Ferreira, hoje com 27 anos, filha de Lampião e Maria Bonita, reza todas as noites pela alma de seus pais e faz promessas para que sua cabeça venha um dia ser sepultada.
Dona Mocinha, irmã de Virgulino, residente em Delmiro Gouveia, Alagoas, diz que Deus não permitirá que ela morra sem ver a cabeça de seu irmão enterrada.
O caso não é de ciência. Para que servirá à ciência uma cabeça de 21 anos, totalmente deformada? Ciência ou atração para os turistas que visitam a Bahia?
Cabe à Justiça brasileira corrigir este tremendo erro. Lampião, Maria Bonita e os nove cangaceiros, cujas cabeças estão expostas no Instituto Nina Rodrigues, já pagaram pelos seus crimes. Agora merecem o tratamento dispensado aos seres humanos com um caixão na sepultura. Como o que esperam ter, em um quarto de século.