Detentor de uma das maiores malhas de trilhos entre as capitais brasileiras, o Recife decidiu, na década de 1960, abrir mão dos bondes para apostar nos ônibus como transporte de massa moderno. Não havia mais lugar para romantismos. Em pouco mais de 50 anos, as composições dominaram a paisagem na capital pernambucana com seus personagens característicos: motorneiros, cobradores e passageiros, todos interagindo de olho no relógio. Pontualidade era ordem. No dia 15 de outubro de 1967, o repórter Ricardo Noblat e o fotógrafo Murilo Guedes embarcaram numa viagem ao passado, resgatando histórias de usuários – uns “chatos”, outros “grã-finos”, estudantes baderneiros e condutores saudosos. Relatos de um Recife que ficou para trás, diferente de outras metrópoles que decidiram permanecer nos trilhos até hoje. O texto da reportagem está na íntegra logo abaixo.
Na trilha da saudade dos bondes
Ricardo Noblat (texto)
Murilo Guedes (fotos)
Quem passar a pé ou nos modernos ônibus elétricos, pela Avenida Caxangá, verá, logo no começo, o cemitério dos bondes. E na certa se lembrará dos passeios por Dois Irmãos, Ponte d’Uchôa, praça Maciel Pinheiro, Campo Grande, quando o transporte era mais agradável e uma viagem de bonde era uma festa de domingo.
Àquele tempo, os bondinhos, apesar de lentos e preguiçosos, eram uma maravilha para os passageiros, que podiam ler jornais e revistas sem ser incomodados. Todavia, enquanto os passageiros viajavam felizes, os motorneiros iam apreensivos com as brincadeiras dos estudantes, e com os minutos que não podiam atrasar.
O PRIMEIRO BONDE
Em 1913 apareceu o primeiro bonde no Recife. E foi aquela festa medonha. O governador – Sérgio Loreto – e outras autoridades fizeram o primeiro passeio. Entre as praças Rio Branco e Maciel Pinheiro todas as ruas estavam embandeiradas, com o povo à porta, e as crianças pulando de contente e doidas para ir viajar também.
Assim que o governador e outras autoridades desceram do bondinho, foi a vez do povo. Quem quisesse, aproveitasse, porque o primeiro dia seria de graça para todo mundo. E enquanto os pais puxavam os filhos pelos braços, as mocinhas aproveitavam para flertar com os rapazes e marcar encontros após as aulas.
E foram chegando mais bondes, e mais bondes. Agora, quase toda a população do Recife era servida pelos bondinhos que constituíam transporte para casa e para o trabalho, ponto de encontro para os namorados, e motivo de anarquia para os estudantes. “Me encontra no bondinho 210. No quinto banco”.
E logo os primeiros bondes passaram a servir o já então grã-fino e requintado bairro de Boa Viagem. Para lá, a passagem direta custava, a princípio, quinhentos réis. Era a mais cara, pois nas outras linhas eram cobrados 300 réis. Somente para a Várzea que o preço era 300 réis, pois tinha três seções. A primeira, até Zumbi, custando 200 réis. A segunda até Iputinga, 100 réis. E a terceira até o terminal.
BOAS LINHAS
Os motorneiros tinham suas linhas preferidas. Sr. Ernesto e Sr. José Viana – que trabalharam dirigindo os bondes durante 25 anos – gostavam mais de Campo Grande, Cabanga, Várzea. “Nunca o Derby nem Casa Amarela, pois além do povo ser chato e mal-educado, tinha muito estudante anarquista”.
Da linha do Espinheiro os motorneiros tinham um pouquinho de queixa. “O povo era muito bom. Não tinha ninguém anarquista, não. Mas o problema é que cada passageiro do Espinheiro tinha uma tabela do horário dos bondes, e se a gente se atrasava um pouco, mesmo sem ter culpa, eles telefonavam para a Central e reclamavam. Aí dava um bolo danado com a gente”.
LINHAS ROMÂNTICAS
Também havia as linhas consideradas românticas pelos motorneiros. Eram sempre as preferidas pelos namorados, pelos recém-casados e mesmo pelos velhos. Dois Irmãos, de Rio Branco até a Maciel Pinheiro, ir à Ponte d’Uchoa e ficar conversando no banquinho.
E os motorneiros dessas linhas eram mais delicados. Quando um cobrador notava que aquele casal estava se amando, às vezes, nem cobrava a passagem. Fazia que não via e ia em frente. O motorneiro fazia que ia chamar o cobrador, só para olhar os casais.
No entanto, mesmo apreciando os casais em idílio, irritando-se com os estudantes e ficando apreensivos com os passageiros do Espinheiro, os motorneiros tinham uma preocupação maior: o tempo que era ouro. Cada minuto de atraso tinha que ser justificado com milhares de desculpas.
E para controle, em determinados locais de cada linha, havia um relógio que marcava o tempo gasto dali até o terminal. Não podia haver cera. Do relógio colocado em Caxangá até o terminal da Várzea, eram nove minutos certinhos.
Na linha de Casa Amarela, o relógio ficava bem em frente ao Sítio da Trindade. De lá para o terminal eram 4 minutos. Em Olinda, do Carmo para o Farol, eram 5 minutos. E se passasse disso tinha de apresentar um motivo muito forte. Senão, seria suspenso ou multado.
Mas os motorneiros eram sabidos. Puxavam um pouco mais pelos bondinhos e chegavam ao terminal sempre 5 ou 6 minutos antes do marcado. E quando o fiscal era camarada, eles saíam para tomar um cafezinho, ou um caldo de cana, e comprar cigarros.
VIDA DE MOTORNEIRO
Ser motorneiro era muito duro. Trabalhava dez horas por dia. Alguns pegava de manhã, faziam 5 horas, saíam para descansar e depois voltavam para dar duro. Se moravam longe, nem precisavam de ter pra casa. Almoçavam no restaurante da companhia, pagando 200 réis. “E era comida boa e muita”, diz o sr. José Viana.
No entanto, o mais chato para os motorneiros eram as brincadeiras dos estudantes e o ter de lavar as mãos com sabão, areia e tijolo para tirar o cobre e o ferrugem que a direção deixava, e as chateações dos moradores de Boa Viagem, “sempre grã-finos e bestas”.
OS ESTUDANTES
E os estudantes eram de morte. Para não apanhar nem se meter em encrencas, o único jeito que os motorneiros encontravam era serem aliados dos “meninos” e aguentar tudo na esportividade. Mas, às vezes, as brincadeiras eram fortes demais e os passageiros reclamavam, as velhinhas resmungavam: “que absurdo”, e os moradores chatos do Espinheiro telefonavam para a central.
Quase sempre, a brincadeira consistia em tirar o motorneiro do seu lugar, tomar-lhe o quepe, forçá-lo a ficar quieto num banco, e botar um deles para dirigir o bondinho, o que provocava a maior onda de protesto dos passageiros, ou então, quando um tomava o lugar do motorneiro, outro roubava a bolsa do cobrador, e de quepe na cabeça, saía fazendo a cobrança. E se a pessoa não pagasse dava a maior confusão: o falso motorneiro parava o bonde e gentilmente convidava o passageiro a descer.
Mas havia outros troços: uma era passar sabão nos trilhos ao meio-dia, o que fazia com que o bonde escorregasse e passasse muito tempo para continuar; a outra era enfeitar o bondinho com galhos de árvore, pés de mato etc.
BONDE DOS JORNALISTAS
Fora a brincadeira dos “meninos”, o resto era tudo normal e certo. A companhia responsável – a Pernambuco Tramways – além de oferecer ao público um perfeito sistema de transportes, de uma eficiência a toda prova, dava toda a assistência aos empregados.
Tanto assim que os que moravam longe podia passar a noite no dormitório da companhia, que comportava dezenas de camas beliches, e tinha uma mesinha para se colocarem os bilhetes. Nº 365. Me acorde Às 4,30″.
Os que, porém preferissem ir pra casa, tomavam o bonde que ficava à disposição, toda a noite, e levava todos. Os que menos gostavam desse “bonde dos empregados” eram os jornalistas, que saíam de madrugada das redações e reclamavam porque não tinham um bonde melhor.
A QUEDA DOS BONDES
E o tempo foi passando. Novos bondes chegaram do Canadá – apelidados de Zepelim, pintados de alumínio – outras linhas passaram a ser servidas. Mas o povo já não gostava mais. E os jornais metiam o pau: “Como pode ser que numa cidade civilizada ainda exista bonde”.
E os políticos foram se metendo. E os bondinhos começaram a ser postos de lado. Restringiram logo as linhas. Eles já não entravam mais no Centro do Recife. Foram adquiridos modernos ônibus. As autoviárias começaram a funcionar.
E o progresso e o desenvolvimento da cidade mataram os bondinhos. Os casais já preferiam namorar nas praças. Os passageiros gostavam mais dos ônibus, pois eram mais ligeiros. Os estudantes não achavam mais graça em bulir com os motorneiros e cobradores. E os carros principais e os reboques esvaziaram.
E, finalmente, um dia eles se recolheram e deram lugar aos ônibus, velozes, possantes e cheios de passageiros que reclamam contra a fumaça, o calor, o aperto, a falta de comodidade.
Hoje, ninguém passeia de ônibus. Somente para o trabalho, escola ou para compras. Fora isso, “Deus me livre andar de ônibus. Não há quem aguente. São insuportáveis. Nem os elétricos, que fazem uma zuada enorme quando param”.
Muito boa reportagem.Parabéns ao Sr. Paulo Goethe. Queria sugerir uma continuação desse post falando sobre os ônibus elétricos de Recife.