Em Foco 2203

O desperdício pode acelerar a chegada do tempo em que o bem será a causa dos maiores conflitos entre as nações, segundo estudiosos. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do domingo, quando se comemora o Dia Mundial da Água, por Luce Pereira. A ilustração da página é de Jarbas.

A água e o fantasma da sede

Luce Pereira  (texto)
Jarbas  (arte)

O verbo desperdiçar, no caso da água, vivia sendo conjugado com força, no Brasil, até que a difícil realidade climática entrou em cena, a paisagem mudou e o que eram rios viraram leitos secos ou quase. Mas foi preciso que a maior cidade do país começasse a se ver diante de um pesadelo velho conhecido dos nordestinos – a escassez do produto – para, somente assim, o país acender o sinal de alerta sobre a necessidade de economizar. São Paulo entrou em pânico, a depender apenas dos humores do tempo, mas dá mostras de que quer aprender a lição. A bem da verdade, é melhor todos os recantos do país começarem a substituir o verbo querer pelo ter, no sentido mais compulsório da palavra, pois não há outra saída: ou se aprende a usar racionalmente ou os riscos de colapso dos mananciais serão uma pesada conta a ser dividida por todos.
Trazendo a situação para bem perto de nós, é preciso dizer que Pernambuco, neste domingo – Dia Mundial da Água -, quase não tem o que comemorar, em termos de conscientização, pois segundo dados reunidos pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2013, na região Nordeste o estado só fica atrás de Sergipe e do Rio Grande do Norte, quando o assunto é desperdício. Num português mais claro, as perdas de água equivalem a 4,5 mil piscinas olímpicas por mês, que significam 20% dos 57 milhões de metros cúbicos tratados mensalmente. Esta, no entanto, não é a pior notícia: estes números dizem respeito apenas ao desperdício que é fruto da idade avançada da rede de distribuição, ficando de fora desta conta os excessos nas residências e os prejuízos causados pelas ligações clandestinas.
Não diz o dito popular que “a dor ensina a gemer”? Pela dificuldade histórica em contar regularmente com água em casa, moradores da parte mais pobre da Zona Norte do Recife são os primeiros a ter que pensar em economia como condição de sobrevivência. Assim, dividem o espaço exíguo de suas residências com baldes, bacias e mais um arsenal de itens de armazenamento, porque é preciso aproveitar cada gota. A propósito, em muitos casos, é a eficiência zero do serviço de abastecimento que obriga a soluções radicais, como arrancar parte da encanação e se despedir do chuveiro. Por nunca receber uma gota, esses equipamentos perdem a utilidade e são trocados por toda a sorte de recipientes, que só veem água quando os donos compram de vizinhos ou de outras fontes usando o dinheiro economizado com a conta.
Mas é onde a sobrevivência não depende da necessidade de economizar que o desperdício faz a festa. Não deveria, pois, em tese, populações de maior poder aquisitivo e com mais acesso a informações seriam, pela lógica, aquelas que reuniriam mais condições de fazer uso racional da água. A realidade aponta para outra direção, infelizmente, mostrando que ainda falta enorme caminho a percorrer até os povos do lado de baixo do Equador se mirarem no exemplo dos do lado de cima. Os ditos países do primeiro mundo seguem transformando em cultura o uso racional do bem (150 litros/dia), conscientes de que ele é finito e de que dele depende a sobrevivência do planeta.
Nunca a ciência se mostrou tão preocupada com os reflexos das mudanças climáticas na preservação dos mananciais de água doce, mas, pela falta de uma política global de conscientização, o assunto segue sendo enxergado por muitos como alarde ou sensacionalismo. Está longe de ser. A cada dia a natureza emite novos sinais de que não vai mais dar desconto à falta de cuidado do homem com a saúde do planeta. Sem querer “colocar areia” no fim de semana de ninguém, mas as perspectivas para um futuro próximo não são nada animadoras.
De acordo com o site Mudanças Climáticas, o impacto dessas transformações causarão, no Nordeste, mais veranicos; tendência para a aridização; uma maior taxa de evaporação poderá afetar o nível dos açudes e a agricultura de subsistência; provocar migração do campo para as cidades; e elevar o nível do mar. Não é preciso dizer que quando a água for a maior causa de conflito entre as nações, a consciência que é necessária agora de nada adiantará naquele tempo. A sorte já está sendo lançada.