Em Foco 1704

Atitude de juiz catarinense faz criança agradecer em carta últimos dias passados com a mãe, doente de Aids em estado terminal na UTI de um hospital de Santa Catarina. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página é de Greg.

A Justiça e o gesto salvador

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Seria mais uma daquelas crônicas que recheiam o Dia das Mães, mas é apenas pequena prova de como um olhar mais humano da Justiça pode mudar destinos. Acaba de ocorrer em Santa Catarina e tem como protagonistas duas crianças (9 e 11 anos) que passaram a viver sob os cuidados da avó paterna e cresceram vendo os pais entrar para o mundo do crime. A trajetória dos meninos poderia, a partir de exemplos tão ruins, render um daqueles filmes sobre delinquência juvenil, como Querô, inspirado na obra de Plínio Marcos, ou Pixote – A lei do mais fraco, do cineasta Hector Babenco, não fosse a decisão do juiz de execuções penais de Joinville, João Marcos Buch, tomada depois de receber em seu gabinete a avó e o neto mais velho. Ela vinha pedir que a mãe dos garotos, soropositiva em estado terminal, tivesse o direito de morrer em casa, “com dignidade”. A presa vivia algemada, na UTI de um hospital de Florianópolis, mesmo enfrentando quadro crítico de saúde.
Pois bem, o que fez o garoto assegurar que, apesar da pesada herança, vai escolher a medicina e não sucumbir aos apelos do crime, foi o gesto do juiz. Depois de ir ao hospital e ver com os próprios olhos a complicada situação de saúde da detenta, Buch autorizou-a a cumprir prisão domiciliar. Para os filhos, foram dias inesquecíveis (vividos na casa de uma irmã dela) e em nenhum momento ofuscados pela lembrança dos crimes que a fizeram retornar à penitenciária e lá experimentar a decadência absoluta, escondida por trás da palavra ressocialização. O mais velho desdobrou-se: acompanhava-a à praia e a passeios, dormia ao lado, para o caso de alguma necessidade. Aquelas horas no ambiente familiar estavam sendo ainda melhores do que a farra do último Natal, quando puderam ir juntos ao shopping e ver os fogos na beira-mar. “Foi bom. A gente fez coisas que não fazia há anos, tipo almoçar”, disse o garoto de 11 anos, como se falasse de presente muito especial.
No dia 25 de março, o vírus da Aids decretou que não teriam nova chance de seguir diminuindo a enorme distância entre eles, sempre ampliada pela violência. Mas o gesto do juiz de rever o regime de cumprimento da pena a partir de uma comprovação in loco da situação da detenta já havia produzido uma promessa de futuro, grandes lembranças e o desejo de trilhar caminhos bem diferentes. Isto está claro na carta de agradecimento que Buch recebeu do garoto, via internet, no último domingo.
“(…) Cresci vendo meus pais fazendo coisa errada e sendo presos. Por muitas vezes entrei na prisão para visitar meu pai ou minha mãe. Por muitas vezes vi eles ganharem a liberdade e novamente serem presos. Mas hoje esse é um passado que não faz mais parte do meu presente. Quis Deus que meu pai saísse da prisão em dezembro, de condicional e fosse trabalhar. Minha mãe, quis Deus que ela ficasse bem doente e o senhor foi lá soltar. Eu tava segurando a mão da minha vó quando ela foi na sua sala pedir para aquelas moças que alguém fizesse alguma coisa pra minha mãe morrer com dignidade e o senhor fez. Também sou soropositivo, essa escolha não fui eu quem fez, mas tenho direito às próximas. E desde já quero ser um homem honesto. Obrigado, senhor juiz/ João Marcos”.
Ou seja, este olhar humanizado da Justiça produz a crença de que as armas para combater a violência dependem muito mais das atitudes de quem julga e menos de leis. Significa que elas, as armas, só serão eficientes na medida em que o poder público der respostas objetivas, simples e rápidas. Mas, não nos enganemos, o coração não pode ser visto como inimigo das sábias decisões, dado que nunca perdeu o posto de grande conselheiro.