Em Foco 1904

Forma de falar dos pernambucanos ganha força nas redes sociais, em perfis que usam o humor como matéria-prima. Tema do Em Foco do Diario de domingo, por Luce Pereira. A arte que ilustra a página foi feita por Jarbas.

Não se acanhe, gaste o pernambuquês

Luce Pereira  (texto)
Jarbas  (arte)

Coloque como plateia para a seguinte piada um carioca e um pernambucano. O primeiro não deve rir nem com o canto da boca, o segundo pode até gargalhar durante minutos. Nordestino criado na roça chega ao Rio com poucos recursos, a fim de tentar a vida na cidade, e ao cabo de alguns dias já não tem uma só moeda. Sentindo a barriga protestar, resolve que a única saída é dar um susto, com revólver “de mentirinha”, em um passante. Deixa a noite cair, posta-se atrás de uma árvore, nas imediações de certo hotel de luxo, em Copacabana, e quando a vítima – um jovem bem vestido – se aproxima, salta na frente como um cabrito, empunhando o pedaço de madeira que fez as vezes de arma: “Mão pra riba e não se bula, se fizer pantim vai virar arupemba!”
Amantes do pernambuquês não precisariam sacar nenhum dos dicionários dedicados a traduzir para a língua de Camões as expressões locais: logo entenderiam os apuros vividos ali pelo ladrão que a fome improvisou, simplesmente porque termos e sotaque fazem parte da memória afetiva. Mas é a duras penas que o rico dialeto vai sobrevivendo a preconceitos e agressões, frutos de uma ignorância incapaz de reconhecer nas diferenças tesouros criadores de identidade cultural e motivo de orgulho para quem fala. As redes sociais fomentam essa ignorância, felizmente, numa proporção menor do que o orgulho, pois multiplicam-se os perfis criados para manter cada vez mais vivas as raízes. Em todos eles, um traço comum – o bom humor e a leveza, duas das maiores marcas dos nordestinos, que antes de serem fortes são alegres e não perdem a piada nem mesmo quando “a vaca tosse”, “a porca torce o rabo”.
A propósito, há muitas outras regiões do país interessadas em não abrir mão desta riqueza. Caso de Florianópolis (SC), que também recorre aos dicionários para manter vivo o manezês – dialeto falado pelos nativos da ilha, conhecidos como Manezinhos – e de Minas, onde o minerês tem exército cada vez maior de admiradores. Mas por que as transformações sofridas pela língua nestes dois estados, por exemplo, não motivam (na mesma intensidade) discriminação e ofensas veiculadas pelas redes sociais? Imagina-se que, entre outros motivos, pelo fato de ainda resistir aquela imagem do Nordeste como primo bronco da inteligência nacional, quando foi o próprio nordestinês a matéria-prima utilizada pela literatura, o cinema e a música para encantar o país. Sem querer colocar mais lenha na mais inútil das fogueiras, lembremos que Asa Branca, de Luiz Gonzaga, destacou-se como uma das canções mais bonitas do século, junto com Aquarela do Brasil (Ary Barroso).
Parte desta riqueza, o pernambuquês segue se fortalecendo contra julgamentos agressivos, que só servem para atestar a ignorância de quem julga. Segue como um moleque para o qual não há tempo ruim, que “perde o amigo, mas não a piada”; que como ninguém acha a maior graça na simplicidade e faz dela sua maior aliada. É assim que, mangando até dos próprios atropelos, o moleque vai ganhando fama de sabido. Queira Camões ou não.