Em Foco 1804

No Brasil são milhares de mulheres como dona Maria das Dores, que criam os filhos de outras famílias  e partilham o amor maternal. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do sábado, por Silvia Bessa. A foto que ilustra a página é do arquivo pessoal.

Querida Babá

Silvia Bessa (texto)

Babá sabe exatamente quem é. Ao que parece, nunca foi e nem quis ser mãe de quatro gerações da família Leal, conhecida no Recife e Região Metropolitana. Com orgulho, no entanto, defende sua cota de participação por hoje ver mulheres e homens feitos que passaram por seu colo carinhoso: “Não, não ajudei a criar os meninos. Eu criei mesmo”, respondeu-me aos 83 anos altiva e sobranceira dona Maria Das Dores da Silva, cujo apelido é parte da sua história de vida nos últimos 70 anos. “Toda negra que cuida de filho de branco é chamada assim, nunca notou?”, indagou-me. A senhora se incomoda?. “Não. Só quando um ou outro não vem aqui me dar atenção. É, porque tem uns que vêm mais e outros menos me visitar”.
Na dúvida do quão aquelas crianças, hoje adultos, representaram para ela, foi categórica: “Criei tudinho como filhos, filhos de criação. Então, tenho como meus filhos. Só”. Há menos de um mês, Babá viu uma dessas filhas postiças casar. A noiva, de branco, reluzente, contratou motorista particular, entregou seu carro para buscá-la e esperou no altar a presença ilustre no casamento celebrado no entardecer do dia 15 de março. “Eu queria muito que ela entrasse no cortejo com sua bengalinha, mas Babá odeia foto, ficou tímida e recusou”, disse Duda Leal, publicitária de 30 anos e a noiva em questão.
Babá estava linda, em sobretons de roxo (cor predileta de Duda), cabelo em coque, sorriso de orelha a orelha, e ficou sentada em lugar de destaque na fila dos avós. “Chorei muito. Naquele momento, senti o amor que tenho, a vida que passei com ela. Deu um movimento aqui em mim”, disse Babá, falando sobre as emoções do corpo e sobre a noiva que pegou nos braços miúda. “Foi Babá quem deu o primeiro banho de Duda quando chegou na maternidade”, contou Jonas Lemos Netto, pai da noiva, que outro dia usou o Facebook para se declarar a Babá dizendo: “Lembre-se que nós te amamos para sempre”. Ela cuidou e criou os três filhos de Jonas – Duda, Alexandre e Carolina. Acariciou muitos outros. Aos 13 anos chegou na casa da mãe de dona Iolanda, depois ficou com dona Iolanda (avó de Duda), com Marisa (mãe de Duda) e os filhos dela…
Na memória de Duda, Babá é a dona da voz doce que narrava histórias na hora de dormir. “Ela não sabia ler, mas contava cada uma linda”, fala, baixando o tom da voz, daquele jeito típico quando a gente cita momentos ternos. “Mais velha, lembro que já sabia escrever e eu ficava brincando com ela com o quadro negro. Era tão bom…”, suspira, para então dizer que a sua querida Babá depois aprendeu a ler e escrever. Nas lembranças de dona Maria das Dores, a Babá, estão os dias que conversava com os meninos, passeava com eles, brincava na praça ao ar livre, fazia comidinhas para agradar o paladar de cada um. Há 30, 20, 15 anos.
“Você sabia que lembro até hoje de alguns momentos desses quando estou sentada aqui em casa? Fico até pensando nisso”, contou a senhorinha, que mora em Abreu e Lima, perto da fazenda de parte da família Leal. Eu imaginava. Babá tem uma relação afetuosa estreita com a família. E a reciprocidade me pareceu clara. Conheci tão pouco dela – quase nada – mas já a admiro como representante de um grupo feito por legítimas mulheres que emprestam seus ombros para muitas crianças na hora de dormir. Que ofertam carinho quando o joelho se esfola no chão, que buscam criatividade para fazer com que a comida se torne atraente. Nesses tempos modernos, de desconfiança nas relações de trabalho, de maus-tratos transmitidos pelas TVs em rede nacional, é difícil se ouvir elogios às babás. Não me lembro de ter tido uma babá (enquanto cuidadora), mas já conheci tantas mulheres que, à moda de Dona Maria das Dores, partilham o amor maternal com intensidade que hoje resolvi declarar a elas todo o meu respeito.