Em Foco 3004

Drama vivido pelo país de Buda é ofuscado por apelos do consumo e expõe indiferença da  humanidade com dores que são do outro. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quinta-feira, por Luce Pereira. A arte que ilustra a página é de Greg, sobre foto de resgate registrada pelo jornal Kathmandu Today.

O pão de selfie e a dor do Nepal

Luce Pereira (texto)
Greg (arte sobre foto do Kathmandu Today)

Na rotina diária de ler o máximo possível de notícias produzidas no mundo, vejo uma, entre centenas, que revela a anestesia da humanidade ante o caos que a cerca: empresa norte-americana inventa torradeira (selfie toaster) com a qual o dono pode imprimir foto no pão. Este exemplo acabado do mais puro narcisismo custa cerca de US$ 70 e deve, segundo expectativa dos inventores, ser um sucesso como foi o pau de selfie. A leitura prossegue e eis que surge o drama vivido pela população do Nepal, atingida por um terremoto devastador, há dois dias. Ontem, sob o reflexo da perda de quase 5,5 mil vidas, habitantes desesperados para voltar a suas casas ou fugir das ruínas e das lembranças de Kathmandu criaram tumulto tentando embarcar em ônibus especiais prometidos pelo governo. Não havia transporte e o estresse causado pelo medo da fome e da sede acendeu o estopim da revolta. Enquanto isso, em Bhaktapur, a apenas 13,5 km de onde ocorria o confronto com a polícia, um bebê de quatro meses era resgatado com vida, depois de três dias sob escombros. Nos braços do salvador, parecia sereno como se tivesse adormecido ao lado da mãe.
Neste ponto da leitura, lembro da torradeira que fortalece a tendência do proprietário de só olhar para o próprio umbigo. Se destinados às crianças do Nepal, aqueles US$ 70 ajudariam a amenizar a dor delas de crescer sem as referências familiares, muitas tendo perdido pai e mãe durante a tragédia. Em situações assim são elas que se tornam emblemas do pesadelo, por se virem condenadas a enxergar no futuro um estranho com cara de poucos amigos. Mas lembrei que há chances mínimas de uma pessoa encantada com a torradeira norte-americana pensar no sofrimento de crianças que até dois dias atrás tinham uma cidade, uma casa e uma família, podiam brincar e sonhar como qualquer outra do planeta.
Nos últimos 80 anos, este é o maior desastre natural enfrentado pelo país e o saldo, além dos mortos e feridos, compromete o futuro. Pelas contas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), quase um milhão de crianças precisa de ajuda humanitária urgente. O difícil acesso a água potável e instalações sanitárias favorece o risco de aparecimento de doenças que se propagam por via aérea e muitas dessas vítimas estão sozinhas, dormindo nas ruas. Pode ser que não precisem experimentar, na mesma intensidade, o sofrimento de cerca de outras 4 milhões, que um ano depois do terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010, no país mais pobre do Hemisfério Ocidental, o Haiti, ainda se deparam com uma realidade dantesca, sem itens básicos de sobrevivência como água e saneamento. Mas o Nepal, igualmente, não tem situação política confiável e situação econômica confortável – é um país pobre, que vive da agricultura e do turismo, cujo governo, também, se vê desnorteado diante da dimensão da catástrofe e reconhece sua extrema fragilidade na gestão das operações de emergência.
Avanço na pesquisa e há tantas outras notícias reveladoras da insensibilidade do mundo ante o sofrimento alheio que a indignação com a torradeira vai se apagando até ser substituída pela imagem do rododendro, a azaleia gigante alçada à condição de flor nacional do Nepal. Merece ao menos uma quem se dispuser a estender a mão quando a natureza se rebelar severamente contra tanto descaso.