O sociólogo espanhol Manuel Castells volta ao Brasil para uma palestra e desconstrói mito que aponta população do país como a mais cordial do mundo. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira, por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página é de autoria de Silvino.
Brasileiro simpático, só no samba
Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)
Se a teoria de que o Brasil é a nação mais simpática do mundo estivesse representada por um castelo de cartas, o sociólogo espanhol Manuel Castells seria o primeiro a retirar a coluna de sustentação do edifício. De volta ao país onde esteve em 2013, ele disse, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, que a polarização política nas redes sociais está aí para provar o contrário. “A imagem mítica do brasileiro simpático só existe no samba. Na relação com as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa agressividade sempre existiu”, disparou, ilustrando a farta argumentação com as lembranças das torturas (impunes) durante o período da ditadura militar.
O sociólogo defende que a internet não é em si responsável pela exarcebação de posturas agressivas, apenas se mostra como um espelho da sociedade, refletindo abertamente o que a população, revelando-se tão diversa, representa. Em outras palavras, se na rede não há constrangimento e se abre a possibilidade de uma comunicação espontânea, vê-se que a sociedade não é tão angelical quanto desejamos, mas, ao contrário, “bastante má”. Ao menos não apenas aqui, segundo o espanhol, que esteve no país em junho de 2013 e retornou recentemente para o evento Fronteiras do Pensamento na Bahia, que reúne notáveis em Salvador, onde concedeu a entrevista. É bom não esquecer que a visita anterior rendeu posfácio em seu livro Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da internet, no qual esmiúça a atual realidade brasileira.
A propósito, a teoria disparada sem floreios pelo sociólogo, longe de produzir indignação, tem sido bem acolhida até no meio jurídico por gente disposta a questionar a tal cordialidade. O professor e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil, Luiz Flávio Gomes, engrossa o coro das vozes dissonantes desde 2011 quando escreveu artigo no blog Jus Navigandi colocando por terra a crença na simpatia do brasileiro. De acordo com Gomes, ela existe parcialmente, pois ocorre apenas entre pessoas das camadas mais favorecidas cultural e socioeconomicamente; não se manifesta quando o contexto é de discriminados (mulheres, crianças, idosos, negros, pobres, índios etc), de “torturáveis, prisionáveis e extermináveis”.
Era fim de janeiro de 2011 quando o site da CNN internacional divulgou ranking que apontava os 12 países mais simpáticos do planeta e, reluzente, ocupando o primeiro lugar, o Brasil. Os motivos que levaram ao título foram os mesmos que fazem ministros do Turismo ficar sob holofotes, em eventos destinados a atrair visitantes de todo o mundo. Exaltam-se maravilhas, resumidas na imagem de povo alegre e acolhedor, enquanto o lado indesejável da realidade fica reservado à crônica policial e para ser debatido por estudiosos como Castells e Gomes, que seguem se perguntando como, diante de números tão assustadores produzidos pela violência (esta também favorecida pelos reveses da economia), a crença da cordialidade perdura entre nós.
Seria mais realista acreditar que a cordialidade é uma senhora pouco tolerante a tempos de vacas magras, como mostra cena que os canais de televisão se fartaram de exibir durante o fim da Guerra Fria e a implantação das políticas de transparência (Glasnost) e de reconstrução (Perestroika) da União Soviética por Mikhail Gorbachev, em 1985. A falta de alimentos produzia longa e interminável espera, até o consumidor se ver na frente do fornecedor. Uma mulher de meia-idade tentava se colocar entre os candidatos a conseguir comprar comida (racionada) quando foi severamente repelida por um homem à sua frente e concluiu: “As filas tornam as pessoas más”. Traduzindo, simpatia e gentileza passam longe quando dignidade vira artigo de luxo.