m_Vistas do Recife

Solaris Editora – Vistas do Recife, capital do Estado de Pernambuco, por volta de 1900: o Mercado de São José, inaugurado em 1875 na Praça Dom Vital; a Casa de Banhos, montada sobre o arrecife que deu nome à cidade, e a Estação da Estrada de Ferro Central de Pernambuco, inaugurada em 1888, na Praça Barão de Mauá

À distância, vista da zona portuária, a construção de madeira parecia uma embarcação encalhada nos arrecifes. Isto desde o final do ano de 1880. Para erguê-la, o empresário Carlos José de Medeiros precisou de uma autorização especial do governo. Afinal, além de sua residência, ali funcionaria o Grande Estabelecimento Balneário de Pernambuco. O empreendimento com dois terraços, um voltado para o Rio Capibaribe e outro para o oceano Atlântico, ficou conhecido popularmente como Casa de Banhos. Até 1924, quando totalmente destruído por um incêndio, foi um local onde, além dos banhos terapêuticos, podia-se comer bem, participar de chás dançantes e até pernoitar, vendo as luzes do Recife ao longe.

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No dia 7 de setembro de 1880, o Diario de Pernambuco já noticiava que estava próximo do recifense se deliciar com banhos salgados em uma estrutura moderna, livre dos “peixes damninhos”. Tratava-se exatamente da Casa de Banhos, construída perto da antiga Ponte Giratória. “Todas as bacias devem ser circuladas por balaustradas de ferro, de modo a oferecer pontos de apoio aos banhistas e assim preservá-los de queda. Do lado interno do recife vai ser preparada uma bacia de natação, sendo o seu espaço circulado por alto gradil de ferro, a fim de evitar que para seu interior passem peixes daninhos. O chalé está sendo pintado, e as obras de alvenaria de ferro para conclusão das bacias estão em andamento, devendo estar tudo concluído antes do dia 15 do corrente, que é quando o contratante desse serviço, o Sr. Carlos José de Medeiros, tenciona abrir o seu bonito estabelecimento ao público. Todas as obras pareceram-nos sólidas; o edifício é agradável, quer em si mesmo, quer pelos pontos de vista que oferece; e cremos que as pessoas que precisarem de banhos de mar dar-se-hão perfeitamente ali, tanto mais que lhe irá nisso uma grande economia de tempo e de dinheiro, além da dos incômodos que se originam da mudança do domicílio para as praias onde de ordinário eram tomados os banhos de mar”.

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O Recife já havia se habituado aos banhos terapêuticos. Vinte e dois anos antes da empreitada do Sr. Medeiros, o Diario já trazia um anúncio da abertura de uma casa no Pátio do Carmo, que funcionaria das 6h às 23h, “com banhos frios de água corrente da Companhia de Beberibe, ditos aromáticos, ditos de choque e chuviscos, banhos mornos simples e aromáticos, assim como banhos medicinais sulforosos e salgados, vindos de Paris. Chamamos a atenção dos senhores doutores em medicina para este estabelecimento, que poderá facilitar-lhes algumas curas importantes. Há lugar reservado e comodamente separado para as famílias”, oferecia o texto publicado no dia 2 de julho de 1858.

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Mas a Casa de Banhos dos Medeiros era de outro nível. Para se chegar lá era preciso tomar um bote ou lancha, no período das 4h40 às 22h. No seu restaurante, com louças inglesas gravadas com monograma próprio, a grã-finagem do Recife se encontrava. Os estrangeiros, vítimas de doenças tropicais ou não, também eram frequentadores assíduos. Quem fosse tomar banho de água salgada teria acomodações para colocar o traje específico, feito de baeta (tecido felpudo de lã). O decoro exigia que o comprimento dos calções e dos maiôs se estendesse até os joelhos.

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Em 1920, os primeiros sinais de crise. Frequentadores reclamaram do cheiro de carne podre vindo do restaurante. Também havia queixas de falta de grades no lado exterior do tanque sul, trazendo insegurança para as senhoras e as pessoas que não sabiam nadar. Dois anos depois, no dia 12 de setembro, a viúva Maria Rita Medeiros anunciava pelo jornal que, por motivo de saúde, encarregava Sydney Albuquerque Galvão Rhodes como superintendente do estabelecimento, “com que se deverão entender os interessados”. O descendente de ingleses teria esta atribuição até 28 de fevereiro de 1923, que seria o final da estação balneária. No dia 14 de setembro, já como gerente, Rhodes anunciava que a Casa de Banhos havia passado por reformas e que estava pronta para receber até 200 banhistas de uma vez. Objetivando servir melhor o público, assinaturas poderiam ser feitas a qualquer momento da estação balneária, com duração mínima de um mês. Rhodes passou a ser o nome à frente da Casa de Banhos, mas seu reinado duraria pouco. As más línguas da época disseram até que seria premeditado.

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Em 8 de abril de 1923, Rhodes já se anunciava como real proprietário da Casa de Banhos e convidava a todos para conferir a reforma que havia feito no estabelecimento, que agora era oficialmente uma hospedaria e pensão, com inauguração para convidados naquela data. O local oferecia condições para abrigar 150 hóspedes e poderia atender 200 banhistas de uma só vez. Duas semanas depois, os deputados do estado discutem projeto propondo aumentar os preços dos banhos salgados, sob alegação das reformas feitas por Rhodes. A Lei 1.576 é aprovada pelo governador Emídio Dantas Barreto, mas em contrapartida aos 25% de reajuste, a Casa de Banhos atenderia gratuitamente doentes da Santa Casa de Misericórdia de lista encaminhada pelo executivo.

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Outra estratégia para angariar recursos, implementada por Rodhes, foi o chá dançante aos domingos, no horário das 14h30 às 17h. As senhoras não pagariam ingressos, mas os cavalheiros teriam que desembolsar 5$000. Autoridades locais e ilustres que desembarcassem no Porto do Recife geralmente seriam homenageados com almoços e jantares na Casa de Banhos, mas o fim do estabelecimento se aproximava.

Casa de banhos 2 julho 1924x

No dia 2 de julho de 1924, na seção Factos Diversos, o Diario trazia um longo texto sobre o incêndio que destruiu a Casa de Banhos. O alerta dos sinos das igrejas começou pouco depois das 13h e os curiosos logo se amontoaram no Cais de Santa Rita para ver o fogo que, com o vento forte que soprava no momento, destruir o estabelecimento de madeira. O acidente teve início no momento em que o gerente Rhodes, juntamente com um empregad, acionava o motor que forneceria energia. Fagulhas atingiram latas de gasolina próximas e deu-se uma explosão. Os 21 bombeiros acionados usaram duas grossas mangueiras com 200 metros de comprimento cada, conseguindo retirar parte da mobília e objetos de adorno. O fogo só foi extinto às 16h30. O jornal informou ainda que a Casa de Banhos estava segurada em 60:000$000 numa companhia inglesa. “A Casa de Banhos foi inteiramente destruída pelo fogo, ficando somente de pé uma sala coberta de telha”.

Nos dias seguintes, Rhodes publicou anúncios informando que daria início aos serviços de reconstrução da seção de banhos, com o objetivo de iniciar a estação balneária em 15 de setembro. “A Casa de Banhos continuará dotada das mesmas vantagens que a tornaram distinguida pelas exmas famílias nos anos anteriores”. Mas o local permaneceu em ruínas.

Passados dez anos, as ruínas da Casa de Banhos ainda eram frequentadas. No dia 18 de janeiro de 1935, o Diario de Pernambuco trouxe uma reportagem apresentando os últimos guardiões do local. O texto, que pode ser lido na íntegra logo abaixo, ainda tem sobrevida depois de oito décadas, por apresentar a história a partir dos personagens. A cidade se desenvolveu sem aquele navio de madeira encalhado nos arrecifes, mas a história, esta ninguém apaga.

Casa de Banhosx

A CASA DE BANHOS E A SUA HISTÓRIA

A Casa de Banhos, como todas as coisas, conheceu a sua época de esplendor. Foi há muitos anos passados, tempo em que o dinheiro não andava escasso no bolso dos pernambucanos. Possuía instalações magníficas que justificavam perfeitamente o nome que lhe davam de balneário elegante.
E a Casa de Banhos era realmente um balneário elegantíssimo. Chegou mesmo a marcar uma época na vida social da cidade. Seus quartos possuíam acomodações para mais de duzentas pessoas e muitos banhistas faziam de lá a sua residência de verão, alugando pequenos apartamentos como se fossem bangalôs de praia.
Nos domingos e feriados, principalmente, o número de famílias que para lá se transportavam em lanchas e botes, era considerável. As piscinas se enchiam de homens, mulheres e crianças, que gozavam as delícias dos banhos de mar.
Mas a Casa de Banhos estava destinada a desaparecer. Dum momento para outro ela arranjou um incêndio, e foi um dia o balneário. O fogo destruiu tudo, arrasou os quartos e as pranchas de madeira e reduziu-os a cinzas. Só ficaram as piscinas, que se conservaram intactas sobre as pedras dos arrecifes.
Todo mundo lamentou o fim inesperado do balneário. Mas ninguém procurou saber como tinha sucedido aquilo, se a empresa pretendia reconstruí-lo ou se teria desistido de fazê-lo. E a Casa de Banhos entrou para o rol das coisas esquecidas.

A SEGUNDA FASE DO BALNEÁRIO

Depois do incêndio, ao contrário do que se esperava, a Casa de Banhos não foi reconstruída. Pertencia por este tempo à viúva Medeiros, tornando-se depois propriedade do sr. Holder, gerente de Wilson Sons & Cia.
Entregue a guarda de alguns vigias, estes mais tarde se encarregaram de remover as madeiras inutilizadas pelo fogo para outro local. Em seguida, aproveitaram parte do material velho, arranjaram pranchas novas e levantaram um pequeno número de quartos provisórios que serviam para as pessoas trocarem de roupa.
Muitos anos depois, a firma Cory Brothers, então proprietária do balneário, pensou, segundo nos informaram, em dotá-lo de novas instalações. O que nunca levou a efeito. Os banhistas, já agora esquecidos das horas de alegria que em outros tempos lá experimentaram, corriam para as praias durante o verão.
Reconstruir a Casa de Banhos seria um negócio arriscado. A reconstrução iria custar uma fortuna e os resultados talvez não correspondessem aos dinheiro despendido. Falou-se também que a firma queria vender o local e o material que ainda podia ser aproveitado. Propagou-se depois que a Casa de Banhos seria transformada em garagem para uma associação esportiva ou que fosse transformada em depósito do carvão da empresa. Mas nada disso foi levado a efeito.
E a Casa de Banhos até bem pouco tempo conservou os seus quartinhos provisórios cujas madeiras ainda carbonizadas em vários pontos deixassem ver claramente os indícios do fogo que lhe deu fim.

SEU GERALDO

Todo mundo que frequentou a Casa de Banhos durante esse período de sua decadência conheceu fatalmente Seu Geraldo. Ele era o vigia que tomava conta da Casa de Banhos. Vivia lá mesmo, metido num quarto miserável e quase nunca ia à terra. Passava o dia atendendo aos banhistas, de quem recebia pequenas gorjetas. Isso nas horas de maré cheia, quando as piscinas eram mais procuradas. Quando a maré baixava e os tanques ficavam secos, ele se ocupava da limpeza dos mesmos. Arrancava pacientemente os ouriços que se encravavam no fundo das piscinas, removia a lama das pedras, varria os bagaços de laranja, abacaxi e outras frutas que as pessoas sacudiam no chão. Depois disso, ia arranjar o almoço. Cozinhava ali mesmo sobre dois tijolos. E o fogo ele fazia com as próprias madeiras dos quartos e das pranchas. Todo mundo dizia por isso que se Seu Geraldo passasse lá muito tempo, a Casa de Banhos terminava desaparecendo. Cada dia as madeiras se desfalcavam mais.

DEMITIDO

Um dia Seu Geraldo foi botado para fora. Deixou de ganhar as gorjetas diárias que os banhistas lhe davam em troca de um pequeno conforto. O pessoal das redondezas do porto comentou a saída do velho e concordou que ele havia perdido uma boa mamata. Mas Seu Geraldo saiu somente porque era bom demais e não tinha jeito de desacatar a ninguém. Acusavam-no de permitir “sururus” e distúrbios diários na hora do banho. Um dia houve um pega feio entre algumas mulheres que haviam bebido muito, e como o homem não conseguisse acalmá-las teve de dar o fora.

SEU ANTONIO

Seu Antonio foi o sucessor de Seu Geraldo. Antes dele já havia exercido lá sua atividade como vigia empregado da Cory Brothers.
Ciente dos “charivaris” e da “pouca vergonha” que reinavam na Casa de Banhos durante o tempo do velho Geraldo, Seu Antonio resolveu moralizar o balneário. Começou proibindo as mulheres de tomarem banho sem serem acompanhadas. Chegou mesmo a cortar o acesso às piscinas a muitas pessoas e não permitiu outros abusos. Conseguiu em parte o que queria, mas não tardaram os dias “alegres” do tempo de Seu Geraldo. Uma vez por outra aparecia algum banhista mais exaltado. Uma discussão, “não pode”, as pessoas interferiam e tudo terminava bem.

A CASA DE BANHOS DEFINITIVAMENTE DESTRUÍDA

Seu Antonio ganhava as mesmas gorjetas de Seu Geraldo. Banho só, 500 réis. Banho com roupa alugada, dez tostões. Com o transporte de bote, em que os catraeiros cobravam também mil réis, saía o banho por mil e quinhentos ou dois mil, conforme. Não era propriamente um negócio. Mas dava para viver. Em compensação, Seu Antonio nada recebia da firma proprietária.
Um dia a prefeitura entendeu de coletar a Casa de Banhos. Esta, apesar de estar entregue a um vigia que recebia dos banhistas gorjetas insignificantes, foi considerada como um estabelecimento. E portanto tinha que pagar imposto para sobreviver. Diante disso, a Cory Brothers resolveu botar abaixo os quartos que ainda restavam e Seu Antonio teve que sair de vez.

MAS A CASA DE BANHOS NÃO SE ACABOU…

Só ficaram de pé as piscinas. As madeiras foram todas retiradas, Mas mesmo assim a Casa de Banhos não se acabou. O número de pessoas que iam tomar banho diminuiu sensivelmente. E os prejudicados não foram apenas o vigia e os banhistas. Os canoeiros também perderam muito. Agora quase não fazem negócio. Raramente aparece um passageiro. Já não há mais o pequeno conforto de antigamente. Os banhistas, ou mudam de roupa nos próprios botes, ou na casa de Azevedo.

AZEVEDO

Azevedo sempre morou na Casa de Banhos. É um preto velho com seus setenta e muitos anos, mas ainda bem conservado, apesar da vida difícil que tem levado. Há muitos anos que ocupava um pequeno quarto. Ajudava os dois vigias em ligeiros serviços, inclusive a pesca. Preparava diariamente o almoço e vivia recebendo um níquel de um, uma roupa usada de outro.
Todo mundo lamentou a sorte de Azevedo quando Cory mandou destruir a Casa de Banhos. Mas ele, assim mesmo, não abandonou o lugar onde sempre viveu. Armou noutro trecho dos arrecifes uma casinha. Como sempre, raramente vem à terra. Os seus velhos conhecidos é que vão procurá-lo. E Azevedo recebe a todos com a maior alegria desse mundo.

Casa de Banhos hoje

Crédito: Jaqueline Maia/DP – Casa de Banhos, no Pina, antigo balneário desativado. Vestígios de piscina, hoje tomada por corais (21/12/06)