Em Foco 3005

Morador de uma casa de repouso geriátrico, seu Pereira não fala e tem um lado do corpo paralisado, mas escreve dezenas de cartas por mês. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do sábado, por Silvia Bessa. A imagem que ilustra a página é de autoria do repórter fotográfico Guilherme Veríssimo.

O último romântico

Silvia Bessa (texto)
Guilherme Veríssimo (foto)

As cartas dele são postas nos Correios semanalmente. No mês, vinte, trinta… Todas em papéis ofícios dobrados com cuidado em três partes iguais, datilografados na Olivetti manual antiga comprada há décadas em camelô a troco de banana ou escritos em letras garrafais pelo próprio punho. “Minha especialidade é falar de amor”, disse ele, que ao longo de uma vida inteira guardou referências postais de mulheres, amigos, parentes e estranhos coletadas na sua trajetória de representante comercial andando pelo Brasil. Ou em leituras recentes. Vez por outra chegam respostas na Estrada do Arraial, nº 3140, bairro de Casa Amarela, Recife, Pernambuco, CEP 52070-230, na Casa de Repouso Geriátrica São Francisco, em nome de José Pereira de Albuquerque. É ele, seu Pereira, o último dos românticos.
Autor de texto leve, bem pontuado e de frases de efeito, trata-se de um homem de 71 anos, cabelos brancos e ralos, sorriso simpático e, ao que tudo indica pelo número de acenos por minuto, popular no seu convívio, onde habitam cerca de 80 idosos e um sem-número de profissionais. Já seria por demais impressionante a paixão de seu Pereira por cartas – esse instrumento particular que virou relíquia em tempos de internet, e-mail, inbox e WhatsApp. Por um fator extra, a relação íntima que tem com a escrita passou a ser fantástica.
Seu Pereira foi vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). O episódio lhe roubou parte dos movimentos do lado esquerdo, deixando-o cadeirante, e sem fala. Mas a determinação para se comunicar, essa é inabalável. Se já rascunhava textos bonitos, passou a fazê-los com mais assiduidade, rotina repetida três vezes por semana, durante toda manhã, no corredor do abrigo. Os textos, nota-se, promovem nele reflexões e lhes dão orgulho: “Aqui quase a maioria dos hóspedes tem formatura, porém só eu quem escreve”, comenta, lembrando que na casa de saúde particular há advogados, médicos e outros profissionais estudados. “Digo que sou analfabeto”.
Na cabeceira, seu Pereira empilha dezenas de envelopes lacrados. Discreto, não gosta de dar detalhes para quem escreve. “Ele era um galã”, brinca Marinês Barbosa, conhecida como Neide, uma das assistentes da casa, vendo o sorriso maroto que não nega a afirmação. O amor é assunto principal; não o único. Ele escreve para concursos de marcas conhecidas, para programas de televisão e até mesmo para comentar a qualidade dos serviços da casa de repouso. Dia desses, depois de muito pedir para liberarem cuscuz na sua alimentação, mandou bilhete para dona Marli Alves, a proprietária do abrigo, dizendo: “Muito obrigado. Quem espera, sempre alcança”. Marli ficou surpresa com a perspicácia do texto.
“Tenho a mania de escrever para me atualizar. E, no meu caso, escrever tem uma bondade porque falo tudo que quero”, afirmou ele, na minha primeira entrevista presencial feita por meio de cartas. “E tem mais: conforme recomendação médica, os meus desejos eu conservo por mais 10 anos, se viver”, completou, fazendo projeções. A clareza das ideias foi o que me levou até ele. Outro dia, seu Pereira remeteu ( com a ajuda dos filhos) uma carta à redação endereçada a mim. Nela, deu um aperitivo de quem é: “Dizem os mais velhos que uma carta só se faz quando se tem um grande motivo. Pois bem, tenho o meu”. Respeitosa, erudita, a mensagem era de “congratulações” a um artigo que escrevi. Sei que vou guardar por muitos anos a carta de seu José Pereira de Albuquerque – de fundo branco e emoldurada com tradicionais listras verde e amarela. Nem sempre se recebe uma carta de um desconhecido com um forte apelo emocional e escrito de forma tão pessoal.
Pena que a minha geração, nascida na década de 1970, seja uma das derradeiras a ter a satisfação de receber uma carta surpresa dessas, de provar a explosão de sentimentos que é abrir o envelope lentamente ou – a depender do remetente – rasgá-lo sem pudores. Porque e-mail pode até cumprir função, mas nunca vai chegar aos pés de uma carta.