Em Foco 3105

Jovens criam loja no meio da rua para quem não tem nada e fazem da solidariedade bandeira para combater a ideia que quanto mais, melhor.  Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco de domingo, por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página é de autoria de Jarbas.

O bem que nasce do desapego

Luce Pereira  (texto)
Jarbas  (arte)

Certo. O senhor, a senhora, não é budista. Não conhece nada da filosofia budista, nem mesmo chegou a ver um monge de perto. Mas se já ouviu sobre o que os praticantes pensam a respeito do desapego, é o que basta para nutrir alguma simpatia pela causa de dois jovens recifenses e, quem sabe, passar a considerar a possibilidade de se desfazer de roupas, sapatos, além de outros objetos amontoados em armários e gavetas.
Os budistas acham que abrir mão de coisas materiais, sem nenhum peso no coração, é alargar espaços na mente para pensamentos luminosos como o que tiveram a atriz Amanda Menelau, 28, e um amigo, o produtor de elenco e diretor Marcos Castro, 33 (além de outros quatro colaboradores), ao ver um vídeo veiculado nas redes sociais. As imagens eram da África do Sul, mas a ideia ganha força mundo afora, embalada pela solidariedade.
Os dois, também, não são budistas – mas nem precisa. Basta-lhes viver em um município com índices expressivos de pobreza, sem políticas públicas que funcionem como luz no fim do túnel e sem perspectiva de mudança para uma ideia de razoável alcance social tirá-los da zona de conforto. O vídeo mostrava pessoas recolhendo roupas e outros objetos para, em algum lugar público da cidade, depois de expostos, serem escolhidos por quem necessita. Uma espécie de brechó ao ar livre, com tudo de graça.
Neste domingo, Amanda e Marcos vão chegar à parte final da tarefa assumida, depois da exibição daquele vídeo, quando cada pessoa inscrita poderá escolher até três unidades expostas nas grades do Parque Treze de Maio, entre roupas, bolsas e outros itens. Foram muitas, as doações – além de todas as expectativas deles, que esperavam algo em torno de 500 peças. Significa que a solidariedade entra mais fácil em combustão quando em contato com as redes sociais. As 300 pessoas convidadas logo confirmaram presença no evento de arrecadação das doações, em poucas horas já somavam 400 e por fim, mais de mil. Até uma empresa de estamparia se sensibilizou e cedeu muitas peças novinhas em folha, ainda com etiqueta. O que não estava perfeito, era limpo, reparado e engomado. Tudo feito na casa do produtor.
Naturalmente, sem infraestrutura e razoável número de voluntários, uma tarefa assim resulta em muito sacrifício e exige dias de dedicação, ainda mais quando os envolvidos têm a própria vida para dar conta, incluindo empregos. Porém, se o objetivo é dar uma aula prática de como o desapego gera benefícios para quem está nos dois extremos do processo (doando e recebendo), o esforço vale a pena. Afinal, é certo que a população, quando devidamente estimulada, consegue refletir sobre o excesso de consumo e atitudes como esta, que seria o outro lado da moeda.
No evento deste domingo, as pessoas que estiverem com senha vão se sentir mais próximas do acolhimento não apenas porque receberão os objetos, mas porque poderão contar suas histórias, inclusive de como acabaram na rua. Uma vez podendo ser ouvidas, deixarão de ser invisíveis, se sentirão fazendo parte da sociedade e não um subproduto dela. Eis no que dá aliviar armários e gavetas, minha senhora, meu senhor. Eis como faz tanta diferença.