O pernambucano vive de ostentação. E, para manter seus luxos, abre mão dos escrúpulos em nome da pilantragem do dia a dia, querendo levar vantagem em tudo. É assunto para apimentar a discussão nas redes sociais? Pois esta provocação foi publicada no Diario de Pernambuco há quase 172 anos, em 5 de dezembro de 1843. O autor, apesar de religioso, gostava mesmo da troça mundana. O padre Miguel do Sacramento Lopes Gama pode ser considerado um dos primeiros polemistas de nossa imprensa. Sua pena afiada não perdoava ninguém. Seu periódico, o jornal recifense O Carapuceiro, tinha no cabeçalho a ilustração de um chapeleiro experimentando uma carapuça na cabeça de um corcunda. No balcão, uma coroa, uma mitra, um barrete e uma cartola. “As cabeças em que elas se assentarem bem, fiquem-se com elas”, era o lema de Lopes Gama, que de tanto “distribuir” carapuças, ficou conhecido como Padre Carapuceiro.
Nas ruas pela primeira vez em abril de 1832, as quatro páginas de cada edição de O Carapuceiro traziam crônicas e artigos do seu único redator, sempre criticando os excessos da sociedade pernambucana. A circulação era incerta, por isto que em diversos períodos Lopes Gama encontrou porto seguro no Diario de Pernambuco, onde tinha coluna. No final de 1843, foi no Diario que O Carapuceiro centrou fogo contra o luxo danoso que grassava no estado. E lançava o alerta, que continua atual tanto tempo depois.
O LUXO DO NOSSO PERNAMBUCO (trechos)
Proporcionalmente às nossas circunstâncias, creio que não há no mundo cidade onde o luxo tenha chegado a tão alto ponto, como em nosso Pernambuco. Ninguém olha para suas posses, ninguém atenta para o futuro, ninguém se importa com a sorte da sua família. O que todos querem é pompear e ostentar de ricos, e faustosos. Qual é a mulher entre nós, a não ser alguma lambisgoia muito miserável, que queira apresentar-se fora de casa com seu vestidinho de chita? Há de ser por força de boa cassa (tecido muito leve e transparente, de algodão ou linho), de cambraia ou de seda. E os pais, os maridos, etc, etc, que se façam no dinheiro para tais objetos, embora se endividem, e arruinem de todo.
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E não são só as mulheres que se tratam com este luxo. São também os homens, que muitas vezes parece as querer exceder na vaidade. Vemos por aí muitas vezes jovens tão pintiparados, tão pintalegretes e faustosos, que se aliás os não conhecessemos, telos-iamos por outros tantos filhos únicos de grandes lordes, que andam vadiando e gastando cabedais por esse mundo.
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Em verdade pode-se sustentar, como tese, que no luxo está a razão suficiente de uma grande parte da nossa tão geral imoralidade. Porque é que muitas vezes o magistrado vende a justiça, senão porque quer sustentar-se com fausto, e os seus vencimentos lícitos lhe não dão ensachas para tanto? Por que é que o escrivão faz das suas, senão porque o ofício não lhe chega devidamente para ter carro e trazer a mulher e as filhas tão faustosas, como as do mais sucoso comerciante? Por que é que há tanta intriga, tanta picardia, tão pouca vergonha nas eleições, se não porque o lugar de deputado, além de representação, pe uma porta franca para por ela entrar algum emprego, com que se possa passar não só cômoda, senão regaladamente? Por que é que o negociante faz às vezes tantas velhacadas, senão para ter com que se trate, como um Lucullo? Por que é que o taverneiro batiza o vinho, arrenega o vinagre, além da branquinha dos pesos e medidos. Por que é que o boticário vende alhos por bugalhos, e faz o seu temível qui pro quo, senão porque todos querem não já viver parcamente, senão com grandeza e luxo?
Em tempos em que a imagem vale mais que mil palavras, o resgate desse texto nos coloca em 1843 e mostra que à aparência é conferido por nossa sociedade Pernambucana um valor maior do que a verdade de fato. Infelizmente!
Texto atual, apesar da sua data de publicação.