Em Foco 0506

Decisão de O Boticário de usar casais gays em comercial gera polêmica e faz conservadorismo mostrar face mais intolerante. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira, por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página é de autoria de Samuca.

Que cheiro tem o respeito às diferenças?

Luce Pereira  (texto)
Samuca  (arte)

Em propaganda, quanto mais barulho mais se alarga a janela na qual o produto é mostrado; a polêmica alimenta a curiosidade e funciona como combustível para fazer subir o interesse do consumidor, embora nem sempre seja o objetivo do anunciante. Por este raciocínio, significa que O Boticário acertou em cheio ao aprovar a campanha dos Dias dos Namorados onde casais (dois gays e um heterossexual) se presenteiam com perfumes. Mesmo sem pretender, a marca conseguiu incendiar as redes sociais e ocupar grande espaço na mídia – sonho de qualquer grande empresa –, sem gastar um centavo além por isso.
Na guerra de opiniões, de um lado os liberais, apoiados por estrelas da MPB como Daniela Mercury e Lulu Santos, e do outro, os ultraconservadores, que têm a voz ampliada em eventos evangélicos, caso da 23ª Marcha para Jesus, realizada ontem, em São Paulo. No centro de tudo, o fato que conseguiu mudar o ânimo das vendas no varejo, apáticas até mesmo no Dia das Mães, tida como uma das datas de ouro para o comércio. É só passear pelos perfis nas redes e ver a quantidade de fotos tiradas na frente das lojas, por pessoas que adquiriram os perfumes em sinal de apoio à campanha.
Diante das reações e da repercussão – que o diretor do comercial, o cineasta pernambucano Heitor Dhalia, disse não esperar -, fica difícil reconhecer no país aquele considerado o mais avançado da América do Sul em relação aos costumes; aquele que, por exemplo, já em 1976 promulgava a Lei do Divórcio, responsável por colocar a pá de cal sobre um do maiores tabus do continente. No entanto, o Chile, que só veio a fazer o mesmo há apenas nove anos, encontra-se muito à frente em relação à causa gay e mais ainda a Argentina, o primeiro país entre os vizinhos a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010.
Enquanto perdemos terreno no continente, quando se trata de antecipar tendências e assumir uma imagem de vanguardistas, também abrimos espaço para dúvidas nada confortáveis – estaríamos caminhando de costas, quando permitimos o crescimento de reações a fatos com os quais o mundo já convive normalmente há muito tempo? É provável, sobretudo quando se sabe que o radicalismo e o fundamentalismo se alastram, encontram terrenos férteis em nações cujas economias e instituições balançam ao sabor das intempéries políticas.
“A ousadia do Boticário parece ser naturalizar num comercial algo que é natural de fato. Gays votam, trabalham e são consumidores – e se perfumam, até com produtos da Boticário! –, por isso podem e devem se ver reconhecidos como seres completos numa propaganda. Algo, inclusive, que ajuda a combater a intolerância que hoje custa vidas de homossexuais inocentes, atacados por quem discorda do que é diferente”, assim abre artigo publicado no jornal El País, fazendo coro às vozes da imprensa a favor da campanha.
Não se trata aqui de estimular a união homoafetiva – como levianamente concluiriam pessoas que levam a intolerância a extremos – nem mesmo defendê-la, pois para isto já existem leis. A questão passa pelo devido respeito às diferenças, delicadamente colocado no comercial. Como bem disse o jornal espanhol, “a hipocrisia não pode pautar o cotidiano do país”. Se permitimos, não merecemos mais do que sermos vistos como uma nação que preferiu “o armário” ao futuro.