Em Foco 0706

Chega o dia em que preparativos para a reforma da casa levam a um choque: como é possível alguém acumular tanta coisa sem se dar conta?  Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco do domingo por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página é de autoria de Silvino.

A simplicidade é libertadora

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

Cada vez mais acredito que nada é por acaso. Há anos me habituei a um ritmo razoável de viagens (nos últimos, foi uma média de uma a cada quatro meses, para o exterior) e a trazer de todas elas várias bugigangas, objetos sem os quais passaria muito bem. E eles foram se somando até gerar uma incômoda conta escondida em armários e gavetas, crescendo na proporção da indiferença da dona com o espaço que passariam a ocupar. Um dia, o susto seria inevitável – pela dimensão do acúmulo e pela consciência (só adquirida com o tempo, infelizmente) de que a simplicidade é libertadora.
O dia chegou. Obriguei-me a uma reforma no apartamento, que exigia um reencontro com todas aquelas coisas. Seria necessário separá-las, encaixotá-las e então ficar de frente para um consumo que eu julgava infinitamente mais modesto. Perdi a conta de quantas vezes repeti “meu Deus!”, enquanto somava itens que eu não usaria nem se vivesse mais três encarnações. Engraçado é que aquilo que na hora da compra produziu prazer só comparável ao da viagem em si, ia se transformando em vergonha e reflexão: em algum momento da vida, a gente só tem olhos para o que lá na frente não fará a menor diferença.
Percebi que mudanças aconteceram no meu perfil de consumidora – a partir do espanto, da autocrítica e da decisão mais dolorosa, enquanto viajante: levar e trazer uma mala mínima. Além de dar adeus ao excesso encontrado, eu estava resolvida a instituir como regra, a partir do “novo” apartamento, não permitir a entrada de nada que não fosse sair na mesma quantidade. Acúmulo nunca mais, porque promessa de uma vida simples significa consciência do que não é necessário. E de onde ela vem? Da experiência, dos exemplos, de um olhar mais demorado sobre a tendência do mundo de fazer o caminho de volta.
É bom descobrir que em muita gente (bem jovem, inclusive) excessos vêm gerando incômodo e, mais ainda, atitudes capazes de fazer diferença. No domingo passado, gente muito pobre pôde escolher três peças entre as recolhidas como doações e expostas nas grades do Parque Treze de Maio. Aquilo só foi possível porque duas pessoas de pouco mais de vinte anos decidiram reproduzir na cidade uma experiência de relevante alcance social na África do Sul, vista por eles em um vídeo postado nas redes sociais.
Volto ao contexto dos preparativos para a reforma do apartamento, que traz à reboque a urgência de uma reforma íntima – e essa exige razoável compreensão do que vem a ser simplicidade. “É o que há de mais difícil no mundo”, disse o dramaturgo e romancista irlandês Bernard Shaw, e eu estou certa que sim, pelas tantas camadas de “verniz” colocadas sobre o essencial, ao longo da história da humanidade. Buscá-la, então, implica em primeiro tentar desenterrá-lo e depois, nunca mais perdê-lo de vista.
No entanto, ao folhear um velho livro encontrado entre tantos esquecidos na estante, leio que o caminho para a simplicidade é pessoal, cada um elege o seu. Pode ser uma opção pelo minimalismo e a frugalidade ou simplesmente a decisão de, olhando mais para a própria essência, olhar mais para os outros. Fico com este, é o que me digo enquanto fecho a última caixa do dia.