Em Foco 1207

Intolerância e grosseria se transformam em comportamento comum, dando cada vez mais sentido à ideia de centro urbano como selva de pedra.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

As relações humanas estão se deteriorando a tal ponto que mesmo as leis não conseguem abrandar o desrespeito. A crônica de dificuldades cotidianas, agravadas por cenários de crise, ajuda a piorar o estado de insensibilidade e indiferença com o outro, mas o que importam não são os motivos e sim os efeitos. Nunca a ideia da selva de pedra foi tão adequada para simbolizar os centros urbanos e o resultado são pessoas prontas para reagir ao menor sinal de contestação. Como se fossem máquinas de guerra que enxergam inimigos por todos os lados e se mostram implacáveis com eles.
Experimente reclamar de alguém que ocupa indevidamente uma vaga destinada a idosos e cadeirantes, em um estacionamento. A sorte é que quando o que fuzila são apenas olhos e palavras, o alvo da fúria sobrevive para contar a história. Os relatos servem como radiografia de um país adoecido pela falta de gentileza, que parece apagar das consciências a noção de direito. Pior: ela passa a funcionar apenas em proveito próprio, porque em certas situações, na cabeça dos exaltados, o contestador não passa de um empecilho que precisa ser removido – com violência, claro.
Há alguns dias, ao chegar à garagem do edifício onde moro, deparei-me com um carro na vaga destinada ao meu apartamento. Liguei para o porteiro, que pediu à “invasora” a gentileza de ir retirar o automóvel. A moça desceu na “versão dragão”, a raiva transformada em chamas e, como se estivesse certíssima, berrou que “quem mandava terem ocupado a vaga dela?” Ora, ora … Concluída a tarefa, me deixou plantada na garagem, pedindo aos céus para nunca mais ter o desprazer de encontrá-la.
Decerto, não é que eu ande sem sorte, a falta de educação e zelo com o outro é que anda assustadora. Superado o episódio da garagem, saio do trabalho e entro no carro, feliz por terminar mais um dia sem grandes aborrecimentos. No entanto, o alívio demora pouco. Na manhã seguinte, noto que o veículo sofreu considerável avaria. Ninguém sabe, ninguém viu. Nenhum bilhete pedindo desculpas e a conta, como alguém com um mínimo de civilidade faria numa situação assim.
Mesmo diante de tantos incentivos, não me sinto inclinada a entrar na fila dos candidatos à viagem só de ida para Marte. Devo seguir com considerável nível de inveja (boa ou branca?) de moradores de países onde basta o pedestre colocar o pé na faixa e todos os carros param. Nestes lugares, para sobreviver, turista precisa dizer obrigada, bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, por favor, expressões simples, gratuitas, que só não fazem diferença mesmo para quem subestima o valor da gentileza e está longe de descobrir o poder que ela tem.
Em minha última viagem à Espanha, eu via, na avenida por onde sempre passava, uma senhora com ar distinto, que pedia esmola sem pedir, apenas com os olhos e um discreto sorriso. Na véspera de voltar, entreguei-lhe o dinheiro restante na moeda local, ela contou-me sua história (os motivos que a levaram àquela vida), me deu um abraço verdadeiro, o endereço, fez votos de que eu voltasse para um café em sua casa, um dia. Era a gentileza mostrando que na companhia dela o mundo pode falar a mesma língua.