Malagueta, Perus e Bacanaço foi publicado em 1963 pelo jornalista, redator publicitário e escritor João Antônio quando ele tinha 26 anos de idade. A história cheia de gírias dos três malandros vagando pela noite paulistana, perdendo a esperança no pano verde da sinuca, foi um assombro. Rendeu dois Prêmios Jabuti ao criador (revelação de autor e melhor livro de contos) e foi traduzida para oito idiomas.

Em 1977, o trio do conto ganhou vida no cinema no filme O jogo da vida, dirigido por Maurício Capovilla com roteiro do próprio João Antônio. Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle se defendiam com maestria nos papéis vindos da cachola do inventor do tal conto-reportagem.

Depois do papel e da tela, só faltava mesmo o bolachão. Em 2013, Malagueta, Perus e Bacanaço tornou-se disco concebido pelo músico Thiago França, uma justa homenagem aos 50 anos de lançamento do livro. O disco pode ser obtido no site do artista. Ficou interessado? Então clique aqui.

Crédito: Editora Cosac Naify/ Divulgação

Crédito: Editora Cosac Naify/ Divulgação

Para quem pretende escrever em jornal – ou em outro meio, com o advento das redes sociais – ler, assistir ou ouvir os personagens de João Antônio torna-se quase uma obrigação. Como definiu bem o texto de apresentação da editora Cosac Naify, que relançou toda a sua obra, “sua prosa afiada deu voz a personagens que não costumavam frequentá-la: o malandro, o menino de rua, a prostituta, o leão-de-chácara, o flanelinha, o informante da polícia e o traficante, quase todos em primeira pessoa”.

Aí vai um exemplo do estilo marcante de João Antônio:

Mas era uma noite de sábado e houve outros lados por onde passaram, apequenados e tristes. Vai-e-vem gostoso dos chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas, descansando. Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e namorados namorando-se, roupas todo-dia domingueiras — aquela gente bem dormida, bem vestida e tranquila dos lados bons das residências da Água Branca e dos começos das Perdizes. Moços passavam sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite quente. Quando em quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas, brinquedos caros e coloridos. Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam. Eram três vagabundos, viradores, sem eira, nem beira. Sofredores.Se gramassem atrás do dinheiro, indo e vindo e rebolando, se enfrentassem o fogo do joguinho, se evoluíssem malandragens, se encarassem a polícia e a abastecessem, se se atilassem teriam o de comer e o de vestir no dia seguinte; se dessem azar, se tropicassem nas virações ninguém lhes daria a mínima colher de chá — curtissem sono e fome e cadeia. Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali.Deviam andar. Tocassem.

A editora reuniu, em 2012, até mesmo todos os contos publicados em livro pelo próprio João Antônio em uma única obra, intitulada Contos reunidos. Como encarte, o fac-símile de uma caderneta de endereços e telefones em que o autor registrava gírias e expressões ouvidas nas ruas. O autor também anotava impressões em versos de bilhetes de loteria e maços de cigarros. Valeria o que estava escrito depois.

Como jornalista, João Antônio trabalhou no Jornal do Brasil, fez parte da equipe fundadora da revista Realidade (1966), e passou pela revista Manchete, O Pasquim e outros órgãos da imprensa alternativa, No fim da década de 1960, chuta o balde e passa a viver de forma despojada. De chinelos e bermuda, escreveu a maioria dos seus quinze livros.

O homem que deu voz ao submundo dos desvalidos morava sozinho. Em 2006, seu corpo só foi encontrado quinze dias depois da sua morte, ocorrida em 31 de outubro. Nestes quase dez anos de ausência, João Antônio não viu que o país tornou-se paraíso de outros tipos de malandros.