Quem já trabalhou em redação de jornal nunca se esquece como foi a sua primeira vez. O nervosismo de receber a pauta e ir para a rua em busca dos entrevistados. A volta e o sacrifício de entender como funcionava o sistema colocado à sua frente. Ver o texto imenso se transformar em uma notinha, se publicada.
Falecido em 18 de julho de 2014, aos 73 anos de idade, o baiano João Ubaldo Ribeiro transformou este momento decisivo em uma deliciosa crônica, que ganhou vida originalmente no jornal O Globo no dia 24 de fevereiro de 1985. O seu relato tinha o sugestivo título de “Este, na verdade, não é o título que eu queria dar” e depois integrou o livro “Arte e Ciência de Roubar Galinha”, publicado pela editora Nova Fronteira em 1998.
Para quem reverencia João Ubaldo Ribeiro como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, é bom saber que ele antes contou histórias de verdade antes de inventar as suas próprias.
Abaixo, o início da sua história…
Este, na verdade, não é o título que eu queria dar
João Ubaldo Ribeiro
Acho que posso dizer que conheço jornal. Meu primeiro emprego foi num jornal. Estava sendo fundado o Jornal da Bahia, todo cheio de bossas novas (exceto a impressão, que era uma rotativa antediluviana marca Marinoni e aí a gente dizia que o jornal era impresso em três cores: preto, branco e borrado; uma vez o diretor se retou e proibiu fotografias no jornal, só podia clichê de traço), e então meu pai, democraticamente, entrou no meu quarto e me disse:
-Vá se vestir.
-Paletó, pai?
-Paletó.
Não perguntei mais nada, o velho nunca teve paciência com perguntadores e quem tem pai nordestino desde cedo aprende que é melhor não impacientar o pai. Saímos, ele me levou à redação do jornal, me apresentou e me empregou de repórter – e eis-me jornalista aos 17 anos de idade.
Aprendi na dureza, no tempo em que não havia estagiários nem diplomados e foca era tratado como foca mesmo, ninguém perdoava nada. Minha primeira matéria foi sobre as filas da cidade. Baiano não estava acostumado com esse negócio de repórter fazendo entrevista, a maioria estranhava e alguns, é claro, partiam para o discurso:
– Fora-me dado opinar com força de lei nessa grave questão da desorganização que campeia nas filas de coletivos de nossa metrópole – sim, pois que metrópole somos, posto que na província – fora-me dado, dizia eu…
Às vezes ficava difícil o orador parar e devo ter ouvido uns oito discursos nesse dia, pelo menos. Mas anotei o que pude, fui para a redação, sentei, caprichei na letra para escrever a grande reportagem, entreguei-a orgulhosamente ao secretário, Inácio Alencar (Inácio “Marráio”). Ele olhou com desprezo para aquelas garatujas escritas a esferográfica, me encarou uns vinte segundos e perguntou, depois de suspirar profundamente:
– Meu filho, você ainda tem as notas que tomou para esta matéria?
– Tenho, sim senhor!
– Ah, que ótimo – disse ele, rasgando meticulosamente a matéria e enfiando tudo na cesta. – Volte e faça na máquina.
Na máquina? Fiquei com vontade de chorar. Nunca tinha escrito à máquina em minha vida, muito mal sabia que havia um botão para quando se quisesse escrever uma maiúscula. Sofri das duas da tarde até quase as oito da noite, consegui batucar pouco mais de duas laudas. Minha maior dificuldade era achar o t. Perdia sempre a localização dele e corria o teclado inteiro sem encontrá-lo. Nuns dez dias já estava batendo o à máquina como faço hoje, com três dedos mas muito depressa, e nem não sei mais escrever nada à mão, mal consigo assinar o nome.
Desde então, por assim dizer, fiz carreira em jornalismo…
Quer saber o final da história? Ela está disponível no livro, recomendável não só por esta crônica. Só para lhe informar, minha primeira matéria no jornal foi a respeito de uma cerimônia no Comando Militar do Nordeste, no Curado. Era para ser um desfile grandioso, mas por causa da chuva transformou-se em um coquetel para convidados. Graças à ajuda do fotógrafo Fernando Gusmão, consegui entrevistar as autoridades necessárias e retornar de Kombi à redação, na Pracinha do Diario, para me submeter ao crivo do editor Manuel Barbosa. Apesar da quantidade colossal desperdiçada de laudas e papel carbono, no dia seguinte vi meu texto batucado na máquina de escrever editado pronto para embrulhar peixe. É o que faço até hoje, não com o talento de João Ubaldo, claro.