Em Foco 0509
Dona Carmem, a mulher do sorriso mais aberto do Recife em tempos de crise, revela a filosofia de vida mantida por ela.

Silvia Bessa (texto)
Nando Chiappetta (foto)

Começa a fazer falta no mercado gente que sorri. Sorri com vontade e de alegria. Não há indicadores para aferir a baixa dessa recessão invisível. Se bem que da janela lateral só se avista indivíduos concentrados no trabalho, em conversas sérias, respondendo a demandas domésticas urgentes e supostamente importantes. Ficou incomum encontrar alguém que gargalha do nada em volume alto. Ou ri baixinho sem controle interrompendo o expediente, a rotina doméstica banal, fazendo pregação de uma vida descomplicada. Em meio à escassez, encontrei essa semana uma joia. Dona Carmem Virgínia é artigo de luxo em um país no qual se suspeita haver uma crise silenciosa – outra indefensável entre várias pelas quais fomos submersos em 2015.
Dona Carmem ilumina quando contrai os músculos da boca e dos olhos e por onde anda chama a atenção pelo bom humor. Abraça forte, gosta que a chame de “meu amor” e faz questão de trocar afetos. Num olhar, num aperto de mão, numa palavra gentil. “O mundo vive de muita mentira, se faz de coitado, esconde sentimentos. Tem que se acabar com essa história de esconder os sentimentos”, defendeu ela, uma mulher que cultua o mantra “seja feliz” e serve de inspiração para uma rotina mais leve. “É a pessoa mais alto astral que tive o prazer de conhecer”, disse a estudante Marianna Luna, extasiada com o brilho de Carmem.
Acreditando na teoria de que o sorriso revela a “sabedoria profunda” de alguém, busquei o que tinha a dizer Carmem Virgínia, cuja imagem impressiona porque dela não se separa a expressão de contentamento. “Se você me perguntar: ‘Carmem, você tem conta no banco?’ direi que não. ‘Carmem, você tem dinheiro guardado?’, responderei que não. Produzo hoje o que vou comer amanhã. Mas, minha querida, gosto de sorrir porque tenho quem amar”. Ao ouvi-la, silenciei por alguns minutos e procurei apreender cada palavra da frase. Não há nada mais simples que essa filosofia.
“As pessoas não deveriam se importar se alguém não te ama como você acha que deveria. O importante é o amor que você tem por ela. Eu, por exemplo, tenho muita gente para amar. Isso é um ideal de felicidade”, disse-me. “A única coisa que nos resta é o amor. E o amor que vale é aquele que não quer nada em troca”. Recifense, criada na periferia do bairro de Água Fria (Zona Norte), Carmem é microempresária, gastrônoma, pesquisadora de comida com matizes africana e Iabassê (cozinheira dos orixás). Sócia do restaurante O Altar Cozinha Ancestral, eleito a casa revelação do ano em Pernambuco, ela está em um ótimo momento profissional (aqui e em São Paulo), mas amigos da época do anonimato garantem que é assim desde sempre. “É como se ela tivesse nascido com uma dose extra de alegria se comparada à de outras pessoas”, diz o Pai Everaldo Alves, sócio e amigo de décadas.
“A verdade que deveria valer é a das coisas que passam despercebidas”, comenta Carmem. Ela própria precisou recorrer ao pensamento para enfrentar o momento atual de pressão, de dúvidas entre expandir ou não o negócio bem-sucedido. “Hoje acordei pensando no valor das pequenas coisas. Para que eu iria querer uma cadeia de O Altar, se cada vez mais eu iria me distanciar das pessoas que fizeram nascer uma nova Carmem? Eu teria uma vida de consumo, distante das pessoas que me são caras. Não, quero melhorar o restaurante com a comida que eu vendo, mas quero que as pessoas me chamem de nega, preta. Isso me basta”.
Autêntica, Carmem ri quando está com vontade e chora publicamente, se preciso. “Todo mundo fica sabendo o que sinto. Se não quero abraçar uma pessoa, não tem quem me faça. Dou a mão para cumprimentar e pronto. Procuro ser verdadeira”, afirma. Para ela, acima de tudo deve ficar a honestidade com os sentimentos. “Tem gente que diz que eu me exponho muito. Que às vezes deveria me preocupar em dar uma boa impressão. Mas não sou impressora para ter de me preocupar com impressão de qualidade”, brinca.
Olhando para Dona Carmem e escrevendo este texto, fiquei desejando que gente como ela se revele ou se renove nesses tempos de crise. Porque, já dizia Martin Luther King, pouco é necessário para transformar uma vida. Basta “amor no coração e sorriso nos lábios”.