Em Foco 0409

Mundo se choca com foto de criança síria encontrada morta em praia turca e imagem passa a simbolizar drama vivido por refugiados que se arriscam na travessia dos mares Egeu e Mediterrâneo, fugindo da fome e da guerra.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Uma imagem somou-se, quarta-feira, à galeria das que refletem o estado de torpor da humanidade diante de tragédias descomunais ou da ameaça de estarem prestes a acontecer. Ninguém precisava ser pai, mãe ou parente do menino Aylan Kurdi, de três anos, encontrado morto na praia turca de Bodrum, para se sentir absolutamente desconfortável, pasmo, com um travo de tristeza na garganta. O corpo pequeno, que pelas roupas lembrava o de qualquer menino de classe média ocidental, conseguia comover a partir de uma reflexão simples e imediata: e se fosse uma das nossas crianças, aquelas que nascem do nosso corpo ou crescem à sombra dos nossos cuidados? Trazer a dor do outro para o universo pessoal continua sendo a forma mais eficiente de dimensionar dramas alheios e acordar para eles: é preciso fazer algo, sair da zona de conforto. E logo.
Foi assim que, nas 24 horas seguintes, a figura do menino passou a se multiplicar nas mais diversas formas, pelas redes sociais e blogs, ganhando contornos de arte recheada de sentimento. Sites pelo planeta afora colocaram Aylan como anjo de uma campanha destinada a despertar a Europa para a necessidade de construir consistente bloco de ajuda a milhares de refugiados que continuam chegando ao continente, todos os dias, fugindo da fome e da guerra. Diante de um mundo estarrecido e comovido, os idealizadores entenderam que esta é a hora e a vez de pressionar por uma política real de socorro às vítimas, embora nenhum dos governos envolvidos dê sinais de que conhece (ou quer) uma saída.
Ao menos era assim, antes da foto. No entanto, diante da enorme repercussão do caso, já se sabe que nada mais eficiente para gerar compaixão do que imagens de crianças sendo submetidas a qualquer tipo de sofrimento. Nos dias de hoje, em que a internet amplia as feridas do mundo e todas chegam em tempo real a milhões de pessoas, elas, as imagens, podem virar pesadelo para governantes. É o caso da Hungria, que, também ocupada por multidões de refugiados, em desespero para chegar à Alemanha, já impediu órgãos de comunicação do Estado de exibir vídeos onde os pequenos aparecem na companhia de pais aflitos por uma chance de sobrevivência longe do caos. Trata-se da mesma Hungria que se valeu de cercas de arame para tentar detê-los, como no tempo em que se faziam muros para separar seres humanos de seres humanos.
A foto feita por Nilüfer Demi não é maior do que a história da família Kurdi em busca do sonho de paz, mas ilustra um capítulo da humanidade só comparável aos horrores vividos durante a Segunda Guerra Mundial. A propósito, sobre isto, a ONU disse tratar-se da “maior crise humana da nossa era”, à qual, até agora, o mundo assiste passivamente, longe de sentir a culpa apontada por uma tia dos meninos mortos (sim, porque o irmão, Galip, 5 anos, também escorregou das mãos do pai, quando o barco virou). No auge do sofrimento, Teema Kurdi disse que todos deveriam dividir esta conta.
De fato, ao menos se levarmos em consideração as reflexões do poeta John Donne, que viveu de 1572 a 1631 e tem uma obra tão bela quanto atual. “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra”, disse o inglês, para em seguida completar com o que, diante do contexto simbolizado pela imagem do menino morto, na praia, parece profecia: “Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.