Em Foco 0909
Discurso de descrença alimenta ideia de crescimento da crise e impede população de ver verdadeiro drama vivido por gente
que foge da fome e da violência em países africanos.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Era quinta-feira, 9 de setembro de 1971, e o beatle John Lennon lançava a música que viria a ser uma das mais executadas no mundo inteiro, durante décadas. Chamava-se Imagine e se candidatava a embalar aquela geração com um terno convite ao desapego, a um olhar especial para o ser humano e a capacidade dele de amar mais o amor do que o dinheiro. Naquele mesmo dia, um dos importantes jornais do país estampava, na primeira capa, promessa do então presidente Emílio Garrastazu Médici, que representou o auge da ditadura militar no Brasil: “Governo pretende distribuir melhor a renda nacional”. Cantada hoje, 44 anos depois, a música de Lennon já não convence como proposta de um mundo a caminho da santa transformação e manchete recente no mesmo jornal mostra o país no rumo contrário ao discurso de Médici: oitenta dos 150 bilionários do país apontados pela revista Forbes continuam engordando a olhos vistos suas fortunas, apesar das vacas magras da economia que, afinal, só são tangidas pelo povo. Diante de dúvidas tão avassaladoras, a principal é: e nós, aonde vamos?
Os menos otimistas diriam que “nem” o vento sabe a resposta. A verdade é que se de um lado a população se ressente do acúmulo de dificuldades, massacrada pela propaganda ruim sobre os rumos do país, do outro não suporta continuar entre o pesadelo e a descrença. Tem saudade da esperança genuína, como se um milagre pudesse resgatar o sentimento de pertencer a um país renovado. “A gente também se cansa de não acreditar e de só ver o lado ruim das coisas repetido como se fosse mantra”, escreveu-me, pelas redes sociais, uma professora aposentada que não se conforma com a apatia geral diante de discursos focados no pior. Reconhece que é uma voz dissonante, mas decidiu tomar para si a tarefa de tentar convencer as pessoas de sua relação sobre as potencialidades do país e as cartas na manga com as quais ele poderá, lá na frente, retomar o caminho. Para o bem e para o mal, nada é para sempre.
Vamos chamá-la de “Anita”, pois detesta visibilidade e é um nome que admira por ter sido o de batismo de uma de suas heroínas. Para deixar de se contaminar pelos “mantras políticos”, Anita diz que passou a ser muito mais criteriosa com os conteúdos que lhe aparecem; se diz cansada de ficar exposta a “bombardeios” vindos da mídia, embora considere instituições como a imprensa o “oxigênio da democracia”. Aos 68 anos e vendo o país surfar em ondas perigosas, não quer repetir o erro de também não enxergar terra à vista em tempo algum. E assim, ninguém estranha que, apesar de tudo, continue a cantar a Imagine, de John Lennon, com um entusiasmo de garota.
Mas não é a vontade de “Anita” de resistir à maré de pessimismo que pode fazer a diferença na forma de a população enxergar a crise atual. É o tamanho da crise dos outros. Diante do mais trágico desastre humanitário de nossa era, como a ONU classificou o movimento de refugiados em direção à Europa, o drama brasileiro pode ser visto com olhos mais realistas. O país, provavelmente, nunca vai conseguir se aproximar do paraíso imaginado por Lennon para a prática de sentimentos e gestos tão nobres, mas não se encontra à beira de abismo tão profundo quanto faz crer o mais repugnante dos interesses políticos. Basta olhar para os lados, como propôs o rapaz de Liverpool, há 44 anos.