Em Foco 1209Crianças que vivem os horrores de uma guerra enfrentam dificuldades de adaptação a uma vida normal no futuro, diz Unicef.

Vandeck Santiago (texto)
Sakis Mitrolides/AFP (foto)

E quando estas crianças choram à noite, e quando têm fome, e quando têm sede, e quando têm medo, e quando têm frio, e quando têm febre, e quando vestem a mesma roupa durante dias e dias, e quando descobrem que o pai e a mãe não são aqueles seres capazes de lhes proteger contra tudo e todos, e quando dormem desejosas de que durante o sono tudo mude de repente mas ao acordar percebem que tudo continua como antes – quem, nessas horas, consegue acalentar essas crianças? Quem, depois de tudo isso, conseguirá tirar o pavor de dentro delas?
Se o drama fosse algo a lhes afligir apenas no presente, já seria doloroso, mas o pior é constatar que as garras do sofrimento atual vão persegui-las no futuro. Segundo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), estas crianças que vivem os horrores de uma guerra no futuro terão dificuldades a uma vida normal. Cerca de dois milhões de crianças que estão submetidas hoje a esse tipo de situação precisariam, já agora, de tratamento psicológico, de acordo com o Unicef.
As crianças são filhas de famílias que fogem da guerra e da pobreza. Vêm principalmente da Síria, país em guerra civil desde 2011, mas também do Iraque, Afeganistão e do norte da África. Na Síria, conforme dados do Unicef, passa dos 5,5 milhões o total de crianças afetadas pelo conflito. Muitas delas atingidas diretamente, e mutiladas com a perda de braços ou pernas. No trajeto de fuga do país de origem, são vítimas de traficantes de seres humanos e ficam sujeitos a abusos de todo tipo. Dentro desse inferno ainda há as crianças que são mais vulneráveis do que outras: são as não acompanhadas, aquelas que não estão com os pais nem com adulto responsável por elas (a separação às vezes ocorre por morte dos pais ou pelo caos em que se dão as fugas). A separação familiar tem um impacto social e psicológico profundo, segundo o Unicef.
É o tipo de coisa insuportável para uma sociedade que se pretende civilizada, não importa onde aconteça, seja na Síria, na Europa, na Palestina, em Israel, no Haiti, no Brasil, em nosso Nordeste. Já entrevistei um nordestino que, garoto, passou por situação semelhante. Seu nome é Isaac Teixeira. O pai dele, o líder sindical rural João Pedro Teixeira, fora assassinado a tiros, na Paraíba, em 1962. A família recebia ameaças. Foi quando o então líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião, conseguiu enviar o menino para estudar em Cuba. Isaac Teixeira me contou que, mesmo depois de muitos anos vivendo e estudando lá, tinha um pesadelo recorrente: ao acordar seu primeiro pensamento era que continuava em sua terra, Sapé (PB), e correndo perigo. Levantava-se apavorado, suando: “A angústia só passava quando eu botava o pé no chão e acordava”. Isaac passou 23 anos em Cuba, formou-se em medicina e retornou ao Brasil em 1986 (O camponês que virou médico, Diario de Pernambuco, 31 de março de 2004).
Não tenho dúvidas de que muitas das crianças que, neste exato momento, estão em campos de refugiados ou cercadas de policiais na fronteira de um país estrangeiro, não tenho dúvidas que muitas dessas crianças vão superar o drama que estão vivendo. Teremos notícias delas no futuro, como temos hoje do médico Isaac Teixeira. Mas nada disso apaga a injustiça que é ter como vítimas de violência seres humanos tão inocentes quanto as crianças.