Em Foco 1109
Que horas ela volta? tem o grande mérito de usar a simplicidade para fazer público refletir sobre mudanças sociais no país.

Luce Pereira (texto)

Quando for assistir ao filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta? (sim, porque merece ser visto), preste atenção na piscina da casa do Morumbi onde trabalha como doméstica a personagem de Regina Casé, Val, que não vê a filha Jéssica (Camila Márdila) há dez anos, desde a última ida a Pernambuco, estado do qual se despediu para tentar a vida em São Paulo. Ela, a piscina, numa hora representará a realidade que separa os patrões da empregada, noutra, será o símbolo da desconstrução de um estigma que, também na arte, tem insistido em colocar nordestinos na pela de pobres diabos caricatos ou risíveis, acostumados a ver o fracasso como sina e a possibilidade de ascensão social, como sonho só acessível a quem tira a sorte grande. No filme, uma Jéssica desafiadora e questionadora chega para fazer vestibular de arquitetura e enquanto se rebela contra a exploração travestida de acolhimento a que a mãe é submetida no emprego, vai abrindo as portas para um futuro no qual ambas se descobrirão pessoas capazes de modificar o próprio destino.
Mas não pense a senhora, o senhor, que irá apenas rir ou só chorar. A diretora, com um roteiro que resolveu brilhantemente a equação dos elementos capazes de prender a atenção da plateia do começo ao fim, consegue levar aos dois extremos e estabelecer uma empatia impressionante com públicos os mais diversos. Foi assim que saiu dos festivais de Berlim (Alemanha) e do Sundance (Estados Unidos) agitando troféus, cena que poderá se repetir na próxima edição do Oscar, se for escolhido pela academia para concorrer entre os filmes estrangeiros. As chances reluzem tanto quanto o olhar de Val ao saber da notícia que vai fazê-la trocar o quartinho apertado na casa dos patrões por uma vida livre de velhos temores. A crítica especializada tem incensado a obra, a diretora e o elenco a ponto de muitas das matérias escritas sobre o tema apontarem o filme como o melhor depois de Central do Brasil e Cidade de Deus.
“Considero a personagem da Jéssica a mais revolucionária do cinema brasileiro dos últimos tempos”, chegou a dizer Marcos Flaksman, arquiteto, diretor de arte e cenógrafo, entusiasmado por se ver diante de mais uma grande prova de que “o cinema autoral pode ser popular”. E como. Feito com recursos da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que em tempos de vacas magras ficam entre modestos e apertados, deve ser um dos  mais rentáveis, além de figurar entre aqueles com potencial para atrair distribuidoras mundo afora. Ecos deste interesse já foram ouvido na França e na Itália.
Se a medida for a emoção à flor da pele de quem deixava, ontem, o Cinema da Fundação, no Museu do Homem do Nordeste, os pernambucanos não devem, em nenhum momento, associar o filme ao triste episódio envolvendo os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira, que usaram de machismo e grosseria para roubar a cena no debate entre Anna e a plateia, ali mesmo, recentemente. Vão, na verdade, ter uma conversa de “pé de orelha” com seus santos, cruzar os dedos e torcer para o Brasil ao menos colocar os pés no tapete vermelho da academia. Afinal, é neste cenário que o Nordeste se sentirá, como diria Odorico Paraguaçu, “de alma lavada e enxaguada”, dando graças à santa indignação de Jéssica: cidadão de segunda classe é quem não consegue se curar do preconceito.