Em Foco 1309

Brutalidade e egoísmo grassam em campos de refugiados na Europa Central enquanto imagens provocam países a contribuir para amenizar caos vivido por famílias.

Luce Pereira (texto)

Poucas pessoas no mundo conheceram tão de perto o drama vivido por refugiados quanto o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que esteve em quarenta países, de 1993 a 1999, para registrar as imagens do projeto Êxodo, um dos mais belos de sua carreira. Enquanto apontava a câmera na direção de cenas capazes de destruir qualquer crença em um futuro melhor para a raça humana, via centenas de meninas e meninos esfarrapados, debilitados pela fome e ainda assim “loucos” para aparecer numa foto. “Como é possível uma criança sorridente representar o infortúnio mais profundo?”, era a pergunta que se fazia e que não encontrava resposta a não ser no fato de a inocência conseguir olhar com olhos lúdicos até para o caos. Ao presenciar a “humanidade em trânsito”, fugindo da pobreza, da repressão política ou das guerras, Salgado entendeu que estava diante de uma história perturbadora, pois ninguém deixa tudo para trás por vontade própria.
Seria esta a compreensão esperada dos povos que viram as fronteiras dos seus países serem cruzadas por multidões de aflitos. Contudo, o que as câmeras de televisão revelaram ao mundo foram cenas de brutalidade e egoísmo explícitos, onde, outra vez, as crianças apareceram como as mais vulneráveis. Nos limites da Hungria com a Croácia elas pontuavam, sexta-feira, a massa humana que, contida num espaço à semelhança de um “curral”, disputava cada sanduíche lançado por policiais húngaros. O campo de Hoszke faz o planeta lembrar que o caminho obscuro percorrido pelo homem em outros momentos da História nunca deixou de seguir paralelamente àquele iluminado pelos direitos humanos.
A cada dia, no entanto, à medida que as coberturas jornalísticas se esforçam para enfatizar mais o drama das famílias do que as consequências políticas e sociais do episódio, as nações são provocadas a dar um mínimo de contribuição. O Brasil, por exemplo, tem sido o novo endereço de 2.077 refugiados da Síria, que representam 24,7% dos 8.400 acolhidos pelo governo. Surpreendentemente, os sírios optam muito mais pelo país do que pela Europa, como mostram estatísticas do Ministério da Justiça, o que, todavia, não significa promessa de uma vida digna – quando muito, um tratamento menos desumano do que aquele dispensado por países da Europa Central. Num momento em que a economia segue ladeira abaixo e o crescimento do desemprego aterroriza a população, as boas-vindas acabam substituídas por gestos de desconfiança. Assim caminha a humanidade.
Enquanto o mundo se debate entre a culpa e a necessidade de diminui-la, tentando formas de melhorar o tipo de ajuda aos refugiados, o documentário O sal da terra, sobre a trajetória do fotógrafo brasileiro, segue sendo uma das melhores lições sobre como sobreviver à desesperança. Depois de acompanhar a triste marcha de multidões inteiras sobre um caminho de dores e incertezas, Salgado concluiu que muitas daquelas pessoas não conseguirão chegar a lugar nenhum. E sofreu. O saldo de viver experiência tão intensa quanto dolorosa o levou a desistir de voltar a testemunhá-las, mas, como bom mineiro, retornou à propriedade dos pais, em Aimorés, e em silêncio, durante dez anos, fez nascer – de mais de um milhão de mudas plantadas na terra vazia– uma floresta densa. Convenhamos que repartir o pão com quem tem fome é tarefa muito mais simples.