Em Foco 2810

Que lição tiramos das frases de cunho sexual sobre uma menina participante do MasterChef Júnior, a campanha virtual com relatos de mulheres sobre abusos sofridos na infância e o tema de redação do Enem?

Silvia Bessa (texto)

Nada mais forte que o relato de assédio sexual narrado por elas. Cru, como precisa ser: “Minha irmã e eu vivíamos brincando com as meninas dele. O pai, um homem com idade entre 40 e 50 anos, vivia desempregado enquanto a sua esposa se virava como empregada doméstica. Aos 10 anos eu era uma menina muito magra mas o corpo já começava a desenvolver. Os seios quase não apareciam, mas ele enxergava o que eu ainda nem via direito. A perseguição começou aí”, escreveu Lenne Ferreira, que contou na internet como o vizinho a coagia, colocava a mão no bolso do short dela para supostamente depositar moedas e tocar a virilha da então menina. “Pouco tempo depois a filha mais nova do casal me confidenciou que o pai a abusava (…)”.
Foi ali numa comunidade do Barro, Zona Oeste do Recife. As cenas se sobrepuseram à luta para erguer um barraco, conquistar terreno para a moradia e consolidar um lar. São vivas até hoje. Foram preservadas pelo tempo. Estavam entre as confidências de Lenne, uma amiga jornalista corajosa por quem prezo. Vítima como muitas outras, que se silenciam na maioria das vezes a custo de um sofrimento decenal. Para garantir a ordem do convívio. Para manter um tabu cultural, não reviver sofrimento e expor parentes, amigos ou conhecidos da mesma rua. Esses, algozes de imagens difíceis de se esmiuçar. Desde domingo, a história de Lenne se tornou pública. Foi publicada na página pessoal dela do Facebook com a hashtag #PrimeiroAssedio.
Outros segredos pessoais revelados: “Lá pelos 15, 16 anos, minha mãe tinha câncer e teve que operar. Escolheu o melhor médico do Rio (de Janeiro) para esse tipo de operação. O mais caro. Enquanto ela se recuperava no hospital, fui até o consultório dele para pagar e pegar uma receita. Ele tentou me agarrar. Deixei o cheque e fui embora humilhada, com um sofrimento extra”, escreveu Tatiana Levy. “O caminho da papelaria era curto. Mas deu tempo de o homem dizer “gostosa”. Eu tinha 9 anos e tinha ido comprar guache”, relembra Letícia, todas usando a mesma referência que, na web, faz com que se reúnam como um relatório único.
Descrições semelhantes estão há uma semana na internet como uma onda libertadora. Foi uma sequência de estímulos que culminaram na movimentação nas redes sociais (Facebook e Twitter). Há uma semana, Valentina apareceu na TV como concorrente de um programa de culinária, o Masterchef Júnior. Queria ser reconhecida como melhor cozinheira do Brasil. Virou objeto de desejo de homens e alvo de comentários de cunho sexual (“Sobre essa Valentina: se tiver consenso, é pedofilia?”, provocou um homem sobre a menina de 12 anos. Teve quem o respondesse concordando). A fundadora do coletivo feminista Think Olga, Juliana de Faria, vítima de assédio na infância e que já atua usando a informação como meio de empoderamento de mulheres, lançou a campanha virtual #PrimeiroAssédio na quarta-feira para que mulheres viessem a público contar seus assédios.
A aderência foi imediata e em todo o Brasil outras mulheres trataram de divulgar o que passaram. O tema proposto pelo Enem para a redação (A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira) no domingo deu fôlego novo à campanha. Até agora se contabiliza mais de 82 mil tweets sobre o #PrimeiroAssedio. Analisando mais de 3 mil tuitadas, descobriu-se que a idade média dos alvos é nove anos e sete meses de idade.
Comecei a ler alguns desses episódios. São muitos e de indignar. Faz-nos pensar em todas as mulheres que cresceram ouvindo ser normal o que hoje – sabe-se – chega a ser criminoso. Nos relatos de assédios, abusos, estupros vividos por amigas. Todas nós crescemos com temores e experiências de assédios sexuais perversos como esses. Quase nunca foram compartilhados com pais, irmãos, polícia porque nem sempre se espera sensibilidade no trato de um tema tão delicado. A campanha nos faz lembrar de filhas, sobrinhas e no mundo que as espera. Como diz Lenne Ferreira, repórter e mãe como eu, “aconteceu e acontece até hoje”.
O que se viu e se vê das redes sociais com a campanha #PrimeiroAssedio, para mim, é o recomeço. Transformar o Facebook e o Twitter, espécie de divãs públicos, em megafone das barbaridades já cometidas pode ser útil para a gente refletir sobre os valores que repassamos para as crianças. Garotos e garotas.