Em Foco 2711

#meuamigosecreto, fenômeno nas redes sociais, conseguiu chamar a atenção para alguns dos comportamentos que mais afetam as mulheres.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Valdenice, a diarista de uma amiga, de tanto de ouvir conversas no apartamento em torno da hashtag ‪#‎meuamigosecreto‬, chamou-me a um canto e quis saber o que diabos era aquilo. Logo ela, que sempre chega ao emprego com mil queixas sobre o comportamento do companheiro, um sujeito de pouca conversa e nenhuma simpatia por direitos e pleitos das mulheres. Achei que estava numa enrascada para explicar a campanha, pois teria que começar com a mágica de fazê-la entender o que é hashtag. Por causa de minha pouca intimidade com a linguagem, a vaga noção foi sendo passada aos trancos e barrancos. Ao esforço, ela correspondia balançando a cabeça além da conta – para me convencer sobre a assimilação do conteúdo – e eu continuava, mesmo sabendo que a missão resultaria inútil. Ao cabo de um quarto de hora, encerrou a primeira parte dizendo um “entendi” cheio de ênfase. Passamos para a seguinte.
Em relação a Valdenice, o primeiro erro que se comete é julgá-la incapaz de escrever ou ler um texto muito básico, bem simplezinho mesmo; o segundo, achá-la indiferente às discussões do cotidiano. Entre uma passada e outra pelos cômodos do apartamento, espicha o ouvido sempre que identifica alguma palavra ou termo ligado à sua realidade e circunstâncias de vida. Naquele dia, o que despertou o interesse foi “amigo secreto”. O Natal chegando, já viu – tem que ter a reuniãozinha em nome da farra, porque ninguém é de ferro. Todos os anos é a mesma coisa: uma negociação sem fim com o marido, que só “libera” se for junto.
Lá bebe todas, mas controla cada gole dela, “porque mulher quando enche a cara começa a olhar para onde não deve”. Ouve isso anos a fio. Nunca teve o amigo secreto dos sonhos com os muito chegados – sem hora para voltar –, porém, ao longo do tempo, acabou se acostumando, afinal, era só mais um tipo de controle.
– Não, Valdenice, este amigo secreto é só o nome de uma campanha que mulheres criaram para que outras mulheres denunciem o machismo, a intolerância, a ignorância e o preconceito dos homens – companheiros ou amigos. Já ouviu falar em Amélia, aquela mulher que faz tudo, aguenta tudo calada, não tem direito a quase nada e ainda precisa andar na linha, “senão o bicho pega”? – Eu disse, reconhecendo que é preciso adequar o vocabulário às limitações do interlocutor.
Recebi de volta um aceno positivo de cabeça, embora acompanhado de um olhar cheio de interrogações. A parte prática da “aula” foi no PC de minha amiga. Levei-a para a frente do monitor e li umas trinta mensagens contidas na hashtag. Os olhos dela iam se acendendo – de curiosidade e excitação. Morreu de rir com algumas e identificou-se com várias, colocando a mão na boca, durante a leitura.
– Quer dizer que está errado a gente ter tanta paciência, né? – E se eles decobrirem que a gente andou escrevendo essas coisas aí? Ave Maria, não quero nem pensar! Expliquei que ali dizia-se o milagre, mas não o santo, quem quisesse que vestisse a carapuça. Valdenice riu de felicidade, parecia estar diante de algo completamente novo. Era o fascínio por “se vingar” denunciando sem correr risco e tendo a própria realidade refletida na de centenas de mulheres. Não se sentia só.
Minha amiga entrou no escritório na hora em que eu perguntava se ela havia entendido.
– A história da rash … O quê? (eu completei: “Hashtag”), não entendi, não. Somente que esse ano não tem quem me empate de ir sozinha para a festa do amigo secreto.